Musk, o predador

Por José Antonio Vieira da Cunha

O contrário do amor não é ódio, é poder. (Sidarta Ribeiro)

Daqui a uma década poderemos estar ironizando ou até debochando do debate que nestes dias incendeia o cenário político e social em relação ao posicionamento do empresário Elon Musk na defesa dos crimes e ódios que o seu X dissemina mundo afora. Mas na fase em que estamos o assunto é sério, muito sério, e nele o que fica evidente é que o bilionário atua como um moleque que ameaça às instituições, um miliciano digital que encobre aqueles que disseminam mensagens de ódio e incitam ao crime sob a alegação de que estariam exercendo apenas seu direito de livre expressão.

Ok, as pessoas têm toda liberdade para expressar o que pensam, mas não estão livres das consequências de suas opiniões. Até o início deste século vivia-se em paz quanto a isso. Havia muita clareza em relação às regras estabelecidas e universalmente aceitas. Se um jornal, uma revista, uma emissora de rádio, uma televisão publicarem calúnias, ou difamações, ou textos contra a democracia, ou ataques levianos às instituições, ou notícias deliberadamente falsas, a lei penalizará não apenas o autor, mas também o meio no qual a manifestação foi cometida. 

O século 21 chegou, os tempos mudaram, a sociedade avançou e a facilidade de comunicação vive um avanço extraordinário graças à evolução dos meios digitais. Mas vamos lá, não existe a figura da imunidade digital, como pregam os falsos defensores de liberdades e que se colocam contra normas que disciplinem a desordem que se estabeleceu com a profusão de meios de comunicação que vicejam graças à internet, com seus sites, blogs, podcasts, plataformas de vídeos e áudios. E assim, graças à democratização espetacular que passou a vigorar na disseminação de informações, o mal ameaça vencer nas redes sociais, que passaram a ser criminosamente instrumentalizadas.

É antidemocrático e antissocial e anticivilizatório pregar a impunidade por delitos de opinião em nome de uma pretensa liberdade de expressão. E sim, é urgente que se encaminhe a regulação das redes sociais, iniciativa que não tem absolutamente nada a ver com censura ou qualquer tipo de limitação em relação à faculdade que o ser humano tem de dizer o que pensa. É inadmissível que sigamos convivendo em um cenário de velho oeste, no qual o mais forte ou mais rico (no caso, o mais bilionário) estabelece as leis e determina as punições. Pois é o que temos hoje com a licença consentida para que se manipule informação, o que leva à desinformação, e se dissemine ódio, violência, ataques a instituições, o que leva à fragilização do convívio social.

Quando mete o bedelho em assuntos internos do Brasil e ataca ministros do STF a ponto de pedir impeachment de um deles - olhe a ousadia -, o que o predador Elon Musk objetiva é tumultuar o processo de regulação das redes sociais. Não quer o regramento, assim como os demais donos das bigtechs, para os quais o ambiente de licenciosidade e polêmica a todo custo é favorável ao estimular audiência e repercussões. Por enquanto, conseguiu o que queria: na semana passada, no calor dos embates com o X, a Câmara dos Deputados decidiu praticamente zerar o debate sobre o Projeto de Lei das Fake News, jogando no lixo o parecer do grupo de trabalho que passou meses debruçado sobre o tema. O parecer foi considerado "contaminado pela polarização", como se esta fosse se extinguir no momento em que a Câmara, polarizada como nunca antes, voltar ao assunto.

As plataformas querem seguir vivendo no doce mundo em que divulgam e manipulam informações, lavando as mãos e atribuindo ao usuário toda e qualquer responsabilidade. Faço minhas as palavras do crítico Sergio Denicoli, no Globo Conectado: "Quando alguém tenta legislar sobre essa zona escura em termos jurídicos, as empresas gritam que se trata de algo que fere a liberdade de expressão, misturando o conceito de crime com liberdade. Não pode ser visto como liberdade difamar alguém, assediar, espalhar conteúdo que seja contrário às leis de cada país. Não faltam no Twitter exemplos de apologia a crimes, anúncios de venda de drogas, estímulos ao suicídio e à automutilação, etc." 

Convém lembrar que o bilionário está sendo sujeito de uma investigação criminal também na Europa por ligação com milícias digitais e leniência em relação a discursos de ódio e desinformação no Twitter. Tá lá o processo na União Europeia por disseminar discursos de ódio e fake news atentando contra a Lei de Serviços Digitais. Lá como aqui, o Twitter é o campeão de falsas informações cujo objetivo é manipular o processo político. Noticiou-se outro dia que ele tem uma pendenga também na Escócia, onde a legislação considera crime a incitação de ódio contra pessoas a partir de sua idade, deficiência, orientação sexual, raça ou religião. A contrariedade de Musk a respeito é patética. Considera que atacar pessoas por alguma destas características não é crime e sim uma forma de liberdade de expressão. Agindo assim, ele se posta como um verdadeiro inimigo da liberdade, muito acima de ser seu pretenso defensor. 

Não vamos demonizar a rede social, longe disso. Há coisa boa demais nela. Por isso, fiquemos atentos para que esta moderna forma de expressão vença como manifestação legítima da sociedade. E fiquemos com o Tutty Vasques, que, à la Jorge Ben Jor, decretou: Musk nada, sai da minha frente que eu quero passar.

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. Ainda tem duas passagens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem quatro netos. E-mail para contato: [email protected]

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