O velório das agências de propaganda

Por Roberto Pintaúde, para Coletiva.net

"As pessoas não são apenas o que são realmente, mas o que imaginam ser e o que os outros imaginam que elas sejam." (Ferreira Gullar)

O filósofo francês Gilles Lipovetsky, idolatrado mundo afora, inclusive aqui em Porto Alegre - não é Juremir Machado? -, afirma que vivemos na "Era do Vazio", em que a esquizofrenia das formas de vida pós-moderna, resultante das práticas tecnocapitalistas-individualistas-possessivas, transforma o excesso em normalidade, ou a exceção em norma, produzindo o império do efêmero, tendo em vista que a racionalidade instrumental da normalidade líquida produz a frivolidade sistêmica. Via de regra, o animal humano perde a sua lei da gravidade, pois resta inviabilizada qualquer referibilidade a padrões axiológicos, diante do panorama da inadimplência das consciências.

Na contemporaneidade, somos todos militantes do insignificante, e o mal-estar na civilização da pressa é a consequência da angústia gerada pela sensação de solidão na multidão: somos intolerantes com a insuficiência do talvez e/ou, com a onipresença do quase e/ou, e com a amplitude do nada/nenhum, e isso legitima a autenticidade dos devaneios. Muito mais do que uma fusão horizôntica, do sentimento cético com o aético, os novos produtos midiáticos resultam do trade-off entre o antiético e o ético, fazendo com que, assim, a tragicômica mitologia da realização pessoal transforme a tabula de valores mínimos em tabula rasa.

O grande paradoxo de nossa sociedade, dita meritocrática, é que não há mais consensus em torno do próprio conceito de mérito: o sucesso é mais relevante que o caráter e o poder do influencer no youtube mais importante que o talento. A mimesis social produz a banalização da banalização. Perde validade a lei da utilidade marginal decrescente, atuante em nossa psicologia do princípio do prazer: o marcador de funcionamento de nosso hedonômetro, como código de ética pessoal, indica estar no máximo, mas a impressão que se tem é de que ele não funciona mais - o prazer do sucesso ou o sucesso do prazer?. A busca pela maximização de prazeres organolépticos - gozo reificador e solipsista - redunda na reificação do animal humano e na sua auto-mercadorização, inserindo-o nas condições de produção/circulação/consumo de bens e serviços.

O peso da consciência mais profunda clama pela concretização do experimento vislumbrado por Eduardo Gianetti: a pílula da felicidade instantânea. Sartre outrora mencionou que o homem está condenado à liberdade: o fardo da individualidade em nossa "sociedade do espetáculo", com sua imensa casta subconsumidora e subinformada, alterou o dilema de Erich Fromm entre o Ter e o Ser: o que importa é Parecer Ser e/ou Parecer Ter - ou Ter-que-Ser no mundo do simulacro. O que era sagrado virou profano e o profano foi sacralizado: a maior prova de nossa incapacidade de absorver a cultura da sacralização do profano é a facilidade com que somos absorvidos por ela.

No que diz respeito às marcas, é bom lembrar os ensinamentos de Charles Sanders Peirce, criador da semiótica: o homem é um signo e a linguagem usada pelo homem é o próprio homem. O exercício da razão cínica em terra brasilis resulta em crise de identidade, mais a satelitização da inteligência: o discurso fácil da propaganda tornou-se um diálogo de surdos - cabe lembrar que a propaganda, exercitada pelas agências em seus melhores momentos, sempre foi caudatária da sociedade e nunca protagonista. A busca por um novo discurso emancipatório perpassa, fundamentalmente, pela quebra de alguns dogmas do cenário de marketing e/ou propaganda, como entidades fantasmagóricas e a discussão que nunca se iniciou a respeito dos benefícios de mídia para às agências, uma das razões fulcro para o atual estágio de moribundo que qual passa o segmento das marcas.

Se a catálise do motor psicossocial pós-moderno é o status - a busca por sua manutenção -, primeiro passo para a instauração de um novo-modo-de-ser (condição de possibilidade) para o mercado, é o des-velamento como um mercado das crenças: o mundo "real" das marcas é o mundo linguístico-discursivo das marcas ou sobre as marcas. O discurso pasteurizado sobre marcas equipara-se às próprias marcas, em sua dupla função de significante e significado, ou produto-acabado e produto-para-venda-de-produto(s). O corpus ideologicus ou o habitus dogmaticus impede o rompimento/transcendência com o establishment mercadológico: profissionais de marketing e/ou propaganda colocam à disposição uns dos outros um prêt-à-porter significativo - para consumo próprio - contendo as respostas prontas e acabadas sobre como fazer marcas-de-sucesso ou marcas-que-proporcionem-sucesso na economia dos méritos ou economia das trocas simbólicas-linguistícas - é a fetichização do discurso e o discurso da fetichização em si mesmo. Diz Cornelius Castoriadis: as condições sob as quais um enunciado constitui uma informação para alguém dependem, essencialmente, do que alguém já é.

A propaganda é um cadáver que nos sorri, sentenciou há 30 anos o fotógrafo Olivieri Toscani; Mas que propaganda é essa? Seguramente, é a que circula dentro das agências e das academias, nunca dentro da casa dos anunciantes. Assim, trata-se de desmistificar o discurso mercadológico como se ele fosse o único e seguro "caminho" para atingir as "impressões autênticas", representadas pelas marcas, até porque a seca esterilidade da "fala autorizada" dos profissionais de marketing e/ou propaganda obriga-nos a parafrasear Cazuza, para dizer que o discurso das marcas não passa de "um museu de grandes novidades". O guia de auto-ajuda do discurso mercadológico sufoca toda tentativa de auto-subversão: o outsider sente-se um contraventor - porte ilegal da fala -, obrigado que é a apagar de seu horizonte inventivo tudo aquilo que não seja confirmado pelo falatório/tagalerice de seus colegas, até chegar a se ignorar por completo, correndo o risco de virar, na melhor das hipóteses, um autômato sem voz própria ou, na pior delas, um mero objeto de alguma butique esotérica.

Se a teleologia das marcas é intermediar dialeticamente o dizível e o indizível, a essência e a aparência, é bom recordar que, para Nietzsche, as condições de experiência e do objeto-experiência são totalmente heterogêneas. Ele sustenta que aparência não é o contrário de alguma essência; o que se disser de alguma essência é apenas predicados de sua aparência. Sendo assim, o acesso a algo nunca é direto e objetificante: o acesso às coisas é pela mediação do significado e do sentido. A condição de possibilidade da compreensão das coisas é a existência de um modo de compreender as proposições significativas: não temos acesso direto aos objetos assim como eles são, mas sempre a partir de um ponto de vista (mediação do significado e do sentido).

Nenhuma simbolização, abarcando o universo das marcas, é possível sem o suporte do imaginário, pois, no seu logro, já está aberta a fenda que cede ao simbólico. A relação do real com o simbólico é resultante de ação abrupta de irrupção e interrupção. O real resiste ao simbólico porque no não-nomeável, não-representável e não-simbolizável sempre há um estado germinal para desfalecer o simbólico. Segundo Lacan, o inconsciente está estruturado como uma linguagem: o simbólico inclui o imaginário como seu suporte e o real como interferências - grânulos do indizível e do vazio - na continuidade e dever incessante do simbólico. O imaginário encapsula-se no simbólico e o real cutuca e fende a simbolização, agindo por conta própria e tomando de assalto o simbólico.

Peirce consolidou a ideia de que as demarcações rígidas entre dois mundos, o mundo dito mágico da imediaticidade qualitativa versus o mundo dito amortecido dos conceitos intelectuais, são dialeticamente interpenetrados, revelando o universo fenomênico e o sígnico como um tecido entrecruzado de acasos, ocorrências e necessidades, possibilidades, fatos e leis, qualidades, existências e tendencialidades, sentimentos, ações e pensamentos.

Associação Riograndense de Propaganda e outras entidades ligadas ao marketing e/ou propaganda, locais ou não, as verdades estão postas: o mercado não quer mais comunicar-se através de agências de propaganda. Quem viveu, viu; quem viver, verá. Aliás, Marshall McLuhan - lembram-se dele? -, ao profetizar a transformação da galáxia de Gutemberg, que redundou na atual cibercultura, afirmou que o meio é a mensagem - podemos dizer que hoje há meio sem mensagem e mensagem sem meio e que os meios de comunicação, igualmente responsáveis pelo velório do marketing e/ou propaganda, seriam extensões do próprio homem.

Martin Heidegger disse que "o mensageiro já deve vir da mensagem, mas ele deve também já ter se dirigido a ela". O que precisa ser redefinido, no mundo contemporâneo, é o universo de emissores e receptores e quais as formas de legitimação das relações que podem ou devem existir entre eles. O que consome de informação meu vizinho, me interessa? O que é necessário, essencialmente, é o revigoramento da natureza qualitativa do cenário mercadológico, de modo a não fazer da questão da qualidade uma mera questão de opinião e/ou ênfase, como querem nos fazer crer as redes sociais.

Qualquer dúvida a respeito das boas intenções deste texto, talvez possa ser elucidada com a leitura do livro "Me agarra firme por trás".

Roberto Pintaúde é sócio-diretor da Zebra Pop e gestor criativo da radioweb e/ou.

Comentários