Carta aberta ao jornalista Diego Casagrande

Por Eduardo Dutra Aydos Quero, inicialmente, em meu nome e dos meus alunos de Introdução à Ciência Política, agradecer tua participação na atividade docente …

Por Eduardo Dutra Aydos
Quero, inicialmente, em meu nome e dos meus alunos de Introdução à Ciência Política, agradecer tua participação na atividade docente desta disciplina.
Vivemos uma efetiva experiência de aprendizado na aula de terça-feira, 6 de agosto p.p., com a análise da política pública estadual na área de segurança que nos ofereceste. Importante registrar, como referencial, o relato histórico da rebelião no Hospital Penitenciário em 7 de julho de 1994, documentado na obra de tua autoria e de José Rafael Rosito Coiro, "Porto Alegre: 48 horas sob terror. (Melara e a rebelião no Hospital Penitenciário)".
A presença, atenção e participação dos alunos, no debate que se estendeu muito além do horário de funcionamento normal da disciplina, testemunham o seu interesse. E da minha parte, como professor e pesquisador em ciência política, posso atestar que os fatos relatados são de interesse perene, para as gerações interessadas na prevenção da patologia sociopolítica, tão claramente sintetizada, com toda a sua carga simbólica, na expressão dramática da violência e do medo que ilustra a foto estampada, com toda a pertinência, na capa da publicação.
Causou-nos, por outro lado, profunda estranheza, senão mesmo comoção, o fato que tenhas sido condenado por uso desautorizado da imagem, na publicação de uma foto de interesse público tão evidente e inconteste, que nos grita à consciência, como se fosse uma advertência: "Melara? nunca mais!"

Mais deprimente, entretanto, foi percorrermos a trilha desta condenação, analisando, sob o enfoque da análise política, os argumentos que embasam a sentença, e percebermos a sua contradição em termos. Equivocada e arbitrária conclusão do magistrado, que afirma a ausência de interesse público perene num documento histórico tão prenhe de significação.
Lembro, por analogia, de uma outra foto assim expressiva - que correu mundo e sobreviveu ao tempo em que foi notícia na sociedade global: a de uma menina queimada por um bombardeio de napalm na Guerra do Vietname. Expressava também violência e terror. Tornou-se um símbolo da paz desejada, que assim também ajudou a construir. Lembro disso para registrar que, embora aquela menina tenha sobrevivido ao sofrimento indizível, documentado pela câmera do repórter fotográfico, nunca lhe ocorreu e nem lhe seria lícito, vivendo num país civilizado e democrático, demandar pelo respectivo direito de imagem, questionando o interesse público perene da sua publicação.
É totalmente arbitrário dizer-se que a foto de um evento de flagrante interesse público - qual seja, a rebelião de Melara no Hospital Penitenciário - como a que ilustra a capa do teu livro, tenha o seu interesse publico prescrito pelo decurso do tempo. É completamente equivocado, sob o ponto de vista da análise política - que é o de que se trata in casu - reconhecer-se "o interesse da população em ser informada a respeito da grave crise que se instalou à época", mas para afirmar-se que o mesmo se esgota nas publicações contemporâneas dos fatos. Pois informação é história? e a história, pela sua própria definição, não se escreve para um momento efêmero na vida dos povos? mas para o perene conhecimento da humanidade.
É contraditório, por outro lado, que se reconheça o interesse histórico de um documento, para constar no interior de uma obra; e que se negue essa mesma condição para a sua publicação na respectiva capa. Por analogia, isso seria a mesma coisa que dizer que a obra de arte - como uma pintura de Da Vinci ou um afresco de Michelangelo - é uma imagem de interesse público se for reproduzida num livro de história da arte, mas que perderia essa condição se viesse a ilustrar a capa do referido compêndio.
E dizer que vivemos na era das comunicações, e que já faz quase meio século que McLuhan escreveu que "o meio é a mensagem"? Isso que, sem desmerecer o conteúdo analítico do teu livro, significa que todo o seu interesse informativo e histórico se atualiza na competência que for impressa à mídia da respectiva edição. E, neste sentido, não haveria capa mais acertada que a foto escolhida? porque, de alguma forma, antecipa e traduz tudo que tu, de alguma forma, pretendeste explicitar no desenvolvimento da obra.
É, portanto, absolutamente injustificada a conclusão do magistrado que te condenou, segundo o qual "o interesse público já estava atendido pela intensa repercussão dos acontecimentos ocorridos naquelas 48 horas de terror (para usar a expressão do título do livro) na imprensa local e nacional? Lá o interesse de informar, aqui o interesse de comercializar a informação." Pretende, ademais, esgrimir a tese esdrúxula, que o interesse autoral e comercial da informação consolida-se pelo decurso do tempo? bem ao contrário do que tem sido consagrado pelos costumes e o direito positivo pátrio. De fato, uma informação publicada e até mesmo a autoria de uma obra de arte, tornam-se de domínio público mas, na contramão do que sentenciou o magistrado, com o passar do tempo?
Diante deste acúmulo de impropriedades, que nos fere a consciência democrática, emerge uma nova e fundamental razão para a reprodução do teu livro, e da respectiva capa: o interesse agora político - mas essencialmente público - do saneamento de uma injustiça e da coibição de futuras violações no mesmo sentido da liberdade de imprensa, ainda que estas sejam perpetradas pela longa manus do poder jurisdicional.
Se julgares de alguma valia, podes usar em tua defesa e para efeitos rescisórios da sentença iníqua, a declaração juramentada e solidária deste professor, dos seus alunos e dos colegas dos seus alunos, que firmam esta carta aberta para dizer que o documento fotográfico, objeto de tua condenação, é de relevante e perene interesse público. Aliás, já pertence à história do Rio Grande, tanto pelo seu valor intrínseco, como pela oportunidade que nos oferece, deste manifesto, como uma ação afirmativa em defesa da liberdade.
Porto Alegre, 22 de agosto de 2.002
* Professor da Disciplina de Introdução à Ciência Política, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS (Seguem-se outras assinaturas coletadas por iniciativa e por conta de um grupo de alunos da disciplina)

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