É bom ser normal

Por Roberto Pintaúde, para Coletiva.net

Um Ancelar perguntou a um Gusmênio por que os Filtrópios não podiam gerar descendência.

O Gusmênio pensou, pensou... mas os atinares de que dispunha não permitiam vôlteres, já que as esponjosas zárbias que levava sobre os ombros dilposos não ajudavam muito nas tentativas para responder questões tão assíndrolas, por assim dizer.

Isto fez Gusmênio debater-se atrás de uma resposta, para tentar descobrir de onde vem a ideia. De que matéria bruta vem essa luz sobre as nebulosas, e que cai de incógnitas criptas misteriosas, como as estalactites de uma gruta?

O senso comum identifica o normal com aquilo que ordinariamente ocorre na realidade, que todos, nas suas condições de pessoas médias em seus papeis sociais da vida cotidiana, conseguem ver, ouvir, se expressar, sentir, atuar e pensar. A normalidade, assim, identifica-se com bom senso e razoabilidade, ou seja, todas as ações e omissões relacionadas como causa e que geram efeitos ou consequências desde que não proporcionem maiores rupturas no real e estejam inseridas no desenrolar de acontecimentos corriqueiros do dia a dia,  podem deixar o Gusmênio às voltas com seu áspero estiplênio, pois no seu entendimento, pelo senso comum, a pessoa tida como normal é aquela que se enquadra no âmbito do homem médio e razoável. Seus atos serão normais consequentemente, se deles se possa avaliar que representem atitudes e pensamentos não destoantes daquilo que razoavelmente deles se esperam, por parte daqueles que interagem intersubjetivamente, pela pragmática comunicação humana. A ideia vem da psicogenética e alta luta, do feixe de moléculas nervosas, que em desintegrações maravilhosas, delibera, e depois quer e executa.

Filtrópios não geram descendência por estarem em desacordo com as leis de Wolperz. Entretanto, a lógica da sociedade de consumo hodierna, como lógica cultural do capitalismo mundializado - em sua projeção de mass media - tem seus próprios padrões de normalidade cuja impositiva está, justamente em moldar o senso comum comunitário e societário ao seu próprio senso comum e, por conseguinte, aos seus padrões regulatórios conforme seu código binário normal/anormal. Assim, o Ancelar, com sua sabedoria cútrila, retruca: Wolperz era inerme, tinha quatro róbulos selados numa caixinha revestida de alacrém e sete rúbilas acendradas no suarabácti do maleteiro do tilburi, portanto, não impõe leis, impõe hósteras. Sendo assim, rebentos não pululam, arneus são despejados pelo ralo das clínicas clandestinas e os filtropinos nativivos sucumbem com o miasma dos asmurros.A ideia vem do encefálo absconso que a constringe, chegando em seguida às cordas da laringe, tísica, tênue, miníma e raquitíca. Desta forma, as três estratégias básicas da "normalidade" dessa lógica são a acumulação, a hegemonia e a confiança, sendo que a "mudança social normal" inclui tanto a "repetição" quanto a "melhoria".

Pela acumulação, o normal está nas subjetividades representadas pela classe social, pelo sexo e pela etnia. Pela hegemonia, o normal está nas subjetividades representadas pela cidadania política, pelos clientes, pelos consumidores, pelos beneficiários, e pelos usuários. Pela confiança, por seu turno, o normal está nas subjetividades representadas pela "cidadania internacional ou cosmopolita", pela cidadania cívica e pela afirmação da nacionalidade.

De uma forma ou de outra, a mercadorização e sua difusão informacional e comunicacional precisa impor seus enquadramentos na regulação da normalidade como modo de auto-reprodução e para sua eficácia performativa ("consumo cultural"), requisitando para isso um mínimo de "lealdade das massas". É nos espaços-tempos onde essa lógica não consegue alcançar ou se mostra presente de forma muito precária é que se torna possível a "erupção" de outros padrões de normalidade, como em motivações outras - normais também - não identificadas com conformismo cultural ou com passividade psicossocial, mimética das representações midiáticas. Nesses espaços- tempos tornam muito tênues as linhas divisórias entre norma e exceção.

Entre normal e excesso; a transmutação da razoabilidade pode resultar na emancipação de um novo senso comum (ou novos sensos comuns), com afirmações mais genuínas e autênticas das personalidades individuais e coletivas. Assim, a ideia quebra a força centrípeta que a amarra, mas, de repente, e quase morta, esbarra no mulambo da língua paralítica. Importa ressaltar, portanto, que não há "monopólio" da atribuição qualitativa do padrão normalidade: o lugar-comum (ou "clichê") pode resultar de atitudes identificadas com a afirmação da autenticidade, a ser comunitariamente compartilhada, e ser proveniente não "de fora" ou "externamente" (a lógica unitária das representações midiáticas consumistas) e sim de emancipações da personalidade que se afirma em situações corriqueiras do dia-a-dia.

A atribuição qualitativa "é bom ser normal" relaciona-se, nessa perspectiva, com os sensos comuns emancipatórios que comunicam e intersubjetivam as representações identitárias. Qual o papel e/ou papéis que uma marca pode desempenhar em um contexto assim descrito? Muitos. Depende apenas da qualidade e da quantidade de como ela se comunica com seus pares em sua projeção de mass media -  como na busca do consumidor pressupostamente individualizado, espaço no qual procuram atuar, tanto as marcas de luxo com seus próprios padrões de normalidade, como o consumidor alternativo.

N.A.: Este texto, além de externar opiniões do autor, traz referência do poema A IDEIA do Augusto dos Anjos e de uma lenda do século XVII que buscava entender o comportamento do ser humano, enquanto consumidor.

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