Sonhos de um marketing gaudério

Por Paulo Ricardo Meira Em entrevista à HSM Management em 2001, Gian Longinotti-Buitoni, responsável pela Ferrari no disputado mercado norte-americano, cunhava a expressão "dreamketing", …

Por Paulo Ricardo Meira
Em entrevista à HSM Management em 2001, Gian Longinotti-Buitoni, responsável pela Ferrari no disputado mercado norte-americano, cunhava a expressão "dreamketing", ou o marketing dos sonhos. Para o executivo italiano, os ofertantes de marketing para se diferenciar deveriam interpretar e materializar os desejos mais profundos do consumidor, realizando seus sonhos. Conforme Longinotti-Buitoni, haveria três sonhos principais na sociedade atual: o do reconhecimento social (atrair a atenção e o respeito dos demais), o da liberdade (transcender as limitações) e o do heroísmo (identificar-se com personagens muito admirados). Veremos neste sucinto artigo como a administração de marketing de produtos tradicionalistas procura responder a esses três sonhos do consumidor.
Na edição 2002 da Semana Farroupilha, evento gaúcho que celebra a Revolução Farroupilha de 1835-45, o patrocinador-mor é a multinacional Coca-Cola, bancando apresentação de artistas como Renato Borghetti, Gaúcho da Fronteira e os Fagundes, entre outros. Para um marketing tão profissionalizado como o da centenária e líder indústria de refrigerantes, a aposta nesse apelo local é bastante sintomática da força do mito do gaúcho e seus símbolos tradicionalistas.
Entretanto, o gaúcho nem sempre foi um herói. A lenda dourada do cavaleiro gaúcho, como herói formador do Rio Grande do Sul, surgiu com a literatura romântica no final do século XIX. Mas a construção do mito do gaúcho é recente e envolve pessoas de etnias diferentes. Flores (2001) conclui que o gauchismo teria sido pouco mais que uma resposta ao movimento modernista que transformou todo o sul-rio-grandense, mesmo o da cidade, em gaúcho. Ele vai mais longe: o mito sobrevive alimentado pela mídia e por interesses econômicos.
Segundo Jung (apud Flores, 2001), "o mito do herói é o mais comum e o mais conhecido em todo o mundo". O herói formador de todas as culturas possui elementos de um arquétipo universal: é corajoso, hospitaleiro, honesto, sacrifica-se pelos amigos, luta contra o mal e não teme a morte. São atributos do herói grego, do cavaleiro medieval, do formador do clã africano, do formador do clã dos índios e do gaúcho, tanto brasileiro, argentino ou uruguaio. Há relatos sobre o gaúcho, que vivia no meio de índios pampeanos, roubando e matando o gado dos fazendeiros. Em 1750 apareceram os termos gaúcho e gaudério para designar os marginais que viviam da pilhagem na capitania de Rio Grande de São Pedro. Em 1800, os malfeitores da Campanha sul-rio-grandenses foram denominados de gaúchos. Durante a época de safra, de novembro a março, esses gaudérios conseguiam emprego temporário nos rodeios e domas nas fazendas de criação de gado. À época da Revolução Farroupilha o termo gaúcho tinha sentido pejorativo.
Entretanto, no final do século XIX, o gaúcho histórico, gaudério e marginal à sociedade, desaparecera como voluntário na Guerra do Paraguai e pelo uso de novas técnicas nas lides campeiras, como o uso do arame dividindo propriedades e cercando as estradas que se transformaram em corredores, onde todos os que passam são vistos e controlados. Não dava mais para gauderiar cortando os campos. Em breve a linha férrea, transportando as tropas de gado, decretou o fim dos tropeiros.
Nessa época, diversos autores começaram a escrever suas histórias e poesias com base no saudosismo desse órfão da liberdade, do vento, dos campos, e forma-se pouco a pouco uma figura à lá "Homem de Marlboro", em que os valores são os que fizeram com que o símbolo do gaúcho se tornasse coletivo por usar arquétipos arcaicos que foram elaborados cuidadosa e conscientemente na mitologia de todas as civilizações ao longo dos séculos: coragem, ousadia, alegria, indiferença pela morte, honestidade, honra, amor ao pago, machismo, lealdade.
Para Flores (2001):

"o gauchismo nada mais é do que um fator antagônico em decorrência da urbanização e da transformação da sociedade que trouxe rupturas morais, mudanças nas relações familiares, competição econômica, dificuldade de relacionamento e reivindicações de grupos, de etnia e de sexo. Mas também tem um significado ideológico, o CTG é organizado como uma estância, patrão, capataz, sotocapataz, peão e prenda. O mito do herói formador se confunde com o latifúndio de criação de gado, que produz pouco emprego e pouco desenvolvimento para a região. Não se pode mexer na fazenda de criação porque ela é o modelo que seguem os tradicionalista. O mito do gaúcho é alimentado pela mídia, em espetáculos de dança, música, canto e declamação. As churrascarias também abrem espaços para artistas tradicionalistas. A indústria de CDs coloca constantemente no mercado fonográfico músicas gau-chescas. Os municípios realizam provas campeiras, concursos de danças e de músicas. Lojas especializadas vendem caríssimas roupas normativas para os bailes e espetáculos, movimentando este segmento comercial."
Não obstante esse "dourar a pílula" promovido pela literatura, a figura do gaúcho e sua índole heróica são tão importantes como a figura do "peão de Barretos", do "Crocodile Dundee" australiano ou do "cowboy" norte-americano. Todos apelam para o sonho do heroísmo, em que eventuais fraquezas em nosso dia-a-dia são sublimadas pelo sonho de "ser gaúcho". Psicólogos defendem a teoria do "self estendido", em que "sou aquilo que uso e possuo", pela qual ao usar uma vestimenta gaudéria estou na verdade me confortando e mostrando aos outros quão valente eu sou. A associação ao heroísmo e à virilidade parece realmente expressiva quando atenta-se para o fato de que no período eleitoral de 2002, o candidato pelotense a deputado estadual José Antonio San Juan Cattaneo, de codinome Capitão Gay, que veio a cavalo com dois companheiros de jornada desde Pelotas para o Acampamento da Semana Farroupilha, foi humilhado e impedido pelos demais acampados de sequer entrar no local.
O sonho da liberdade também é explorado na medida em que músicas gaudérias evocam os grandes horizontes do campo e as lides e prazeres do gaudério, que faz sua sesta na sombra de uma árvore após um farto churrasco com as prendas e os companheiros, enquanto essa música está na realidade sendo executada em um aparelho de CD no cubículo de um quarto-e-sala nas cinzentas grandes cidades.
Por sua vez, o sonho do reconhecimento social está expresso nas promessas do varejo especializado, onde vemos as indumentárias e equipamentos necessários ao verdadeiro gaúcho, que quer desde a admiração do vizinho à aprovação dos companheiros de centros de tradição gaúcha. Não se vai a um CTG de surfwear, vai-se com o código de vestuário aceito e determinado como fashion para a "tribo dos tchê". Alguns designers de moda campeira consensuaram que em 2002 o "in" para as prendas é a saia com casaquinho. Pode ser o mesmo vestido ou saia básicos, mas uma variedade de diferentes casaquinhos permitirá à prenda fashion uma versatilidade ao vestir sem um grande desembolso na guaiaca. A recente obra "Manual do Gaúcho", da pesquisadora da Universidade Federal de Santa Maria Maristela Ribeiro, é como um guia de etiqueta ao candidato a entrar nesse universo. Não apenas explica as origens da cultura gaúcha como fornece dicas úteis sobre o chimarrão e a lenda da erva-mate, peças da indumentária e outros assuntos afins. A existência de entidades como a Associação dos Pajadores e Declamadores Gaúchos e o sucesso dos inúmeros CTGs no Estado mostram a força agregadora e de apelo social que é a estética e liturgia gaúchas.
Ruben Oliven, conforme relatado em Jacks (1999), ressalva que não há dados quantitativos setoriais dessa indústria de produtos "nativistas", mas chama a atenção o impressionante número de atividades ligadas às tradições. O renascimento das coisas gaúchas, em contraponto à tendência de globalização, era responsável há poucos anos pela existência de aproximadamente mil entidades tradicionalistas, mais de quarenta festivais de música nativista, envolvendo um público de aproximadamente um milhão de pessoas, e de vários rodeios. Esse crescente interesse também ajuda a explicar o consumo de produtos culturais voltados à temática gaúcha: programas de televisão e rádio, colunas jornalísticas, revistas e jornais especializados, editoras, livros, livrarias e feiras de livros regionais, publicidade que faz referência direta aos valores gaúchos, bailões, conjuntos musicais, cantores e discos, restaurantes típicos com shows de músicas e danças e lojas de roupas gauchescas. "Trata-se de um mercado de bens materiais e simbólicos de dimensões muito significativas que movimenta grande número de pessoas e que, pelo visto, está em expansão" (OLIVEN, 1992 apud JACKS, 1999).
Depoimentos de empresários do ramo, como os das lojas Rincão Gaúcho e Alchieri, na capital gaúcha, apontam que o consumidor de produtos tradicionalistas é aquele indivíduo porto-alegrense por opção, e não por naturalidade. O porto-alegrense natural da capital não possui o hábito da bombacha, do facão, das danças no CTG. Esse hábito é trazido quando de sua vinda de uma cidade no Interior, em que ali sim a tradição era mais forte. Em uma cidade mais cosmopolita como Porto Alegre, um sotaque mais reforçado ou um pala no rigoroso inverno são indicativos quase certos de que o indivíduo é de origem interiorana. Uma pesquisa da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) revela alguns indicadores socio-econômicos, quando o produto em questão é o chimarrão: o maior número de consumidores está nas classes B e C, com 70,7% da amostra da pesquisa. Enquanto 32% dos entrevistados tomam chimarrão de 1 a 2 vezes por semana, 51% tomam todos os dias. No cruzamento de freqüência de consumo por classe social, percebeu-se que os entrevistados da classe A tendem a tomar chimarrão entre 1 a 2 vezes por semana (e mais aos finais de semana), constatando-se que o chimarrão diário é um hábito mais da classe média do que das classes mais altas e mais baixas.
O Movimento Tradicionalista Gaúcho, criado em 1966 e pretendendo ser a síntese e congregação de todas as manifestações nativistas no Estado do Rio Grande do Sul, é quem talvez melhor explore a gama de produtos que podem ser ofertados sob essa bandeira do tradicionalismo. Para citar alguns produtos do MTG: CD de Hinos Oficiais, coletâneas musicais diversas, Legislação Tradicionalista, agendas de diferentes modelos, livros dispositivos de bandeiras e brasões e obras literárias, além de óbvias camisetas e outros colecionáveis nativistas.
Não obstante um fenômeno regional, percebe-se tentativas exitosas de exportação do conceito do estilo de vida gaúcho para outras querências, como os Estados Unidos, Canadá e Europa, onde churrascarias gaúchas são estabelecimentos disputados por ambos gaúchos em férias e visitantes gastronômicos locais. Quase que por ironia da globalização cultural e mercadológica, a rede de churrascarias Fogo de Chão abriu sua mais recente filial justamente em Atlanta, na Geórgia, sede da multinacional que patrocina nossa Semana Farroupilha. O sonho de transcender, neste caso, se realizou.
Bibliografia

ALVES, Fábio. Churrascarias brasileiras nos EUA ficam à margem da "vaca louca". O Estado de São Paulo, 7 fev. 2001. Edit. Economia & Negócios.

FLORES, Moacyr. O mito do gaúcho. Correio Rio-grandense. Caxias do Sul, 19 set. 2001.

JACKS, Nilda. Querência: Cultura regional como mediação Simbólica - um estudo de recepção -. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999.

MANUAL reúne normas do gauchismo. Jornal A Razão, Santa Maria, 11 set. 2002.

NAISBITT, John; ABURDENE, Patricia. Megatrends 2000. São Paulo: Amana-Key, 1990.

NIQUE, Walter M. (Professor Orientador) Os Hábitos de Consumo de Chimarrão em Porto Alegre. Pesquisa da turma da disciplina de Pesquisa em Marketing da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dez. 2001.

VENDEDOR de sonhos. HSM Management. São Paulo, maio-junho 2001.
* Professor de Marketing da Ritter dos Reis e UCPel

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