Elogio às vésperas do juízo final

Por Nilson Lage O governo que entra provavelmente vai extinguir o Exame Nacional de Cursos, o provão. Essa, pelo menos, é a intenção de …

Por Nilson Lage
O governo que entra provavelmente vai extinguir o Exame Nacional de Cursos, o provão. Essa, pelo menos, é a intenção de alguns especialistas na área de educação superior que se supõem serem influentes junto à cúpula do PT.
Como participante da comissão que rege o Exame Nacional de Cursos de Jornalismo desde sua criação, quero prestar esse depoimento, antes que ele pareça uma lamúria e no momento em que já não pode mais ser considerado instrumento de autopromoção junto ao governo que parte, em boa hora - e já vai tarde.
Pelo contrário, não há a menor chance de o que se segue me trazer qualquer vantagem. E participar dessas comissões do ENC, é sempre bom lembrar, jamais rendeu um tostão a qualquer dos professores convocados.
Primeiro, asseguro que o provão representou, em nossa área (o Jornalismo), uma alavanca de modernização importante, induzindo escolas privadas e públicas a instalar laboratórios e a preocupar-se com o tipo de profissional que estavam formando. Venceu-se o ciclo da reprodução ideológica, armando os coordenadores de curso de instrumentos de pressão junto às mantenedoras (governo incluído: estão chegando os equipamentos contratados há seis anos no exterior, com um adicional de 25%, para as universidades federais) e junto à parte dos professores mais submissos à rotina ou atentos exclusivamente à própria carreira.
Um argumento dos opositores do provão é que os resultados individuais não são divulgados nem constam do histórico escolar: isso resultou de emenda incluída no Congresso por parlamentar em nome do interesse dos estudantes e que se incluiu no processo de negociação, embora contra o entendimento dos técnicos do Ministério da Educação.
Outro, que o provão é caro. De fato. Mas, pelo que sei, a verba é do Banco Mundial, carimbada. Não pode ser usada para outro fim.
O terceiro, o principal, é que ele avalia a escola "numa prova só", sem considerar outros indicadores de qualidade do ensino. É mentira. O provão é parte de um sistema de avaliação que inclui instrumentos de acompanhamento estatístico administrativo e inspeções periódicas para avaliação das condições de ensino.
Gênios desconhecidos

As avaliações de condições de ensino, que competiam à estrutura minimalista da Secretaria de Ensino Superior, passaram a ser feitas de maneira mais regular e eficiente com a transferência da atividade para o Inep, órgão que tem pessoal especializado e um histórico de competência que data de sua criação por Anísio Teixeira.
No entanto, o provão é, talvez, o mais conseqüente de todos os mecanismos de avaliação, porque não está subordinado ao Conselho Nacional de Educação (CNE), que é controlado pela indústria do ensino particular, quer através da designação de alguns conselheiros quer por cooptação de outros.
No caso das avaliações de condições de ensino, os relatórios das comissões - que passaram a ser constituídas de maneira ética, abandonando-se o anterior e humilhante esquema de remuneração direta dos avaliadores pela escola fiscalizada - tramitam necessariamente, em última instância (a decisiva, a hora da punição), pelo CNE, onde nada caminha que desabone as instituições nele representadas. O mesmo acontece com a normalização curricular (por exemplo, o Conselho não admite 50% de disciplinas técnicas em jornalismo porque isso aumenta os custos das escolas, já que essas turmas teriam que ser menores e usar individualmente equipamentos).
Já o provão escapa a esse filtro. O resultado sai na imprensa; tem repercussão imediata nos vestibulares (com o excesso de oferta, arrumar clientela é o objetivo número um do marketing das empresas de ensino), independentemente de providências administrativas que o ministério não teve até hoje condições políticas de tomar (há, por exemplo, no Congresso, além da bancada ruralista, uma bancada que representa a indústria de bacharéis e o governo negocia com essa gente, na democracia à brasileira).
Os donos de escolas preferem agir discretamente contra o provão - dando apoio, por exemplo, a reuniões estudantis e aos radicais livres que as lideram, mediante bolsas, passagens etc. Estimulam a aliança entre a paixão insurgente e a picaretagem juvenil.

A oposição ostensiva é feita por professores prestigiados das melhores escolas públicas. Esses compõem o bloco dos "saudosos do Paiub", sistema de auto-avaliação que ainda vige, mas não tem sido ativado.
Começa aí o delírio ou a má-fé. Para a avaliação do Paiub, são chamados observadores externos e acionados mecanismos internos de informação e aferição. Faz todo sentido para uma universidade pública, uma universidade pontifícia ou algumas instituições fundacionais sérias. Já imaginaram, porém, um sistema desses aplicado àquilo que a Constituição de 1988, em um ataque de insensatez, chamou também de "universidade"? Aquela, por exemplo, que prolifera pelo país como as baratas e cujo dono acha que pesquisa é besteira? Ou a outra, de propriedade de conhecido bicheiro paulista? Ou aquela terceira, que oferece um carro zero quilômetro ao formando que tirar a melhor nota no provão?
Por que, talvez, o delírio? Porque, obviamente, a auto-avaliação pode funcionar em alguns casos (participei de uma em casa decente mas que, pelo que sei, não teve maiores conseqüências) mas certamente não na maioria deles.
Por que, talvez, a má-fé? Porque os convidados (preferentemente professores prestigiados das melhores escolas públicas) para compor as comissões externas de avaliação das escolas mercantis vão ganhar uma nota para dizer que os cursos são ótimos, as salas bonitas, os coordenadores gênios desconhecidos etc.
Acreditam que estou sendo ácido, injusto? É porque vocês não viram o que já vi em matéria de pareceres indecentes dados por indivíduos supostamente acima de qualquer suspeita.
* Jornalista, professor titular do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

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