"Submissão" de Michel Houellebecq

Por Braulio Tavares Este romance foi lançado na semana do atentado ao "Charlie Hebdo" em Paris, quando vários desenhistas foram assassinados por fanáticos jihadistas. …

Por Braulio Tavares
Este romance foi lançado na semana do atentado ao "Charlie Hebdo" em Paris, quando vários desenhistas foram assassinados por fanáticos jihadistas. (É esta a versão vigente na época em que escrevo; sei lá o que já terão descoberto sobre esse fato daqui a 50 anos.)  Houve uma certa saia justa, porque podia ser até o livro certo, mas era na hora errada. Numa hora em que o Islã, ou pelo menos uma parte ruidosa e pungitiva do Islã, praticava uma carnificina, ninguém que tivesse lido ou tomado conhecimento deste livro deixaria de ligar as duas coisas, sabe-se lá com quantas arrobas de preconceito.
Soumission (2015) saiu no Brasil pela Alfaguara, com tradução de Rosa Freire d"Aguiar. É quase uma ficção científica, um romance de antecipação ambientado no ano de 2022, num futuro-próximo em que um candidato muçulmano se elege presidente da França. Ben Abbes, o candidato da Fraternidade Muçulmana, vai para o segundo turno contra um candidato de direita, e com isso consegue o apoio da esquerda, e se elege. A França adere ao véu, ao Corão, iniciando um movimento de islamização da Europa.  Alguns personagens anunciam a substituição de uma civilização decadente por outra em ascensão.
Foi estranho estar lendo este livro justamente agora. Comprei por acaso, na calçada, e já estava mais ou menos na metade quando ocorreu o atentado que matou dezenas de pessoas em Nice (e que ainda não se sabe se foi atentado jihadista ou gesto pessoal de loucura). E depois a tentativa de golpe contra o presidente da Turquia, uma história ainda confusa no momento em que escrevo, mas onde houve um componente de atrito entre presidente islamizador e forças armadas "laicas".
Não tinha lido outras coisas de Michel Houellebecq, que conheço apenas das entrevistas onde ele parece ser um excêntrico, desbocado, cheio de opiniões idiossincráticas, vasta erudição e verve verbal temível. O livro tem tudo isso. Ele também é meio chegado a temas de FC, provavelmente pertence àquela geração de intelectuais franceses que há 40 anos estavam lendo traduções de Philip K. Dick.
O narrador, François, é um professor da Sorbonne, solteirão, sem família alguma, que vive da fama dos seus trabalhos sobre a obra de J.-K. Huysmans, o autor decadentista de À Rebours (1884), Là-Bas (1891) e outros. Ele narra sua rotina, seus namoros com as alunas, suas saídas com garotas de programa, sua frustração profissional, etc., aquela tradicional crise da meia-idade do personagem do mainstream ocidental. Tudo se encaminha para mais um romance existencialista-realista-parisiense, mas chegam as eleições e Ben Abbas sobe ao poder. É uma guinada philipkdickiana na História, e François, a França, os franceses, todo mundo é jogado para uma realidade paralela.
Em momento algum (preciso reconhecer) Houellebecq faz uso de algum tipo de jargão, figura narrativa ou clichê da FC; também não dá aquelas piscadelas cúmplices para certo grupo de leitores de gênero ("prestem atenção neste nome próprio, é para mostrar que eu já li Fulano"). Seu livro é para os franceses seus contemporâneos. Pelo uso maciço de personalidades reais (políticos, pessoas da mídia, etc.) deve ser uma leitura divertida onde podemos ver políticos de verdade enredados, mesmo que à distância, numa realidade meio fantástica.
Digo meio à distância porque o narador de Houellebecq só fala de si mesmo, é um simpático e patético poço de solipsismo. Ele só fala dos próprios problemas, mesmo sendo uma testemunha viva de um momento histórico mais importante do que, por exemplo, a Passagem do Milênio. É o Retorno do Reprimido, de certo modo. O refluxo dos colonizados, como uma flecha no coração do colonizador. A Europa invadida pelo Oriente; não pelos seus exércitos, mas pelos seus estudantes, pelos seus profissionais do subemprego, pelos seus carregadores do piano alheio, pelos seus biscateiros e pelos seus operários-padrão, pelos seus refugiados de guerra. Um exército que invade em paz. Invade querendo agradar a cidade invadida. Invade não num movimento bélico, mas numa onda geopolítica somada a um vagalhão demográfico. Não é o "uh-tererê!" da guerra.  É o tsunami silencioso dos tempos daquilo que chamamos paz.
E vejam só, na França islamizada-do-dia-para-a-noite de Submissão ninguém pega em armas, os mosqueteiros do rei não saem à rua, os filhos da pátria não formam seus batalhões, a guilhotina não fica fazendo traco-traco até o dia amanhecer. A França de Houellebecq parece aceitar passivamente essa troca de civilizações, quase como se estivesse cansada de ser o centro do mundo. (Sim, a França pensa que é o centro do mundo, e quem pode censurá-la por isso?)  Quase como se a submissão fosse o relaxamento final de uma tensão custosamente mantida; como se entregar-se ao inimigo trouxesse ainda mais prazer do que lutar contra ele.
E no entanto o livro continua a ser um romance existencialista. O leitor com perfil FC ou de romance histórico fica querendo saber o papel dos EUA e da Rússia nesse cataclismo, saber o delicado balanço político de potências vizinhas como Inglaterra, Alemanha, sei lá? Nada. Sabemos pouco do que acontece fora do quarto-e-sala de François.  Do que acontece fora da cabeça de François. Ele se deixa progressivamente atrair para o Islã, cuja Sorbonne privatizada lhe promete um salário três vezes maior e o direito a casamento poligâmico. Quem hesitaria? Diante de uma oferta dessas proporções, a França de Houellebecq não hesita, parece entregar-se de graça e sem luta, deixa-se tomar pelo inimigo, descobre na última frase que ama o Grande Irmão.
Braulio Tavares é escritor e jornalista. Tem o blog www.mundofantasmo.blogspot.com .

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