A Busca por Cervantes

Por J.A.Moraes de Oliveira Eu rodava pelas estradas da Espanha, em direção a La Mancha, e perguntava a mim mesmo qual a razão de …

Por J.A.Moraes de Oliveira

Eu rodava pelas estradas da Espanha, em direção a La Mancha, e perguntava a mim mesmo qual a razão de estar perseguindo os rastros de Don Miguel de Cervantes. Já sabia que era quase impossível encontrar seus traços em La Mancha e que era mais fácil encontrá-los em Madrid, onde viveu e morreu, ou em Alcalá de Henares, onde nasceu e foi batizado.


Miguel de Cervantes era para mim uma figura humana mais misteriosa do que seus personagens. Todos sabem qual a aparência de seus heróis imortais, Don Quixote e Sancho Pança, embora nunca tenham existido.


Mas jamais alguém pintou ou desenhou Cervantes enquanto ele vivia.


Ele descreveu a si mesmo apenas uma vez e sua imponente estátua na Plaza de España, em Madrid, foi esculpida de acordo com um auto-retrato que pouco diz: "?a estatura, a meio-caminho entre os dois extremos, pois ele não é nem alto nem pequeno: a tez com viço, embora mais pálida do que bronzeada: as costas curvadas e as pernas lentas?".


As outras estátuas, ao longo da "Ruta de Cervantes", repetem suas roupas, às vezes o rosto, mas pouco dizem sobre o homem que, antes de se tornar escritor, foi guerreiro em Lepanto, refém de piratas e, por não pagar suas dívidas, prisioneiro em Sevilha.


Dias atrás, eu havia percorrido a Madrid dos Bourbon, em busca da casa onde Cervantes vivera e do convento onde fora enterrado. Quase desistindo, me deparo com a rua que tem seu nome. O guia da cidade indica o número 22, mas não vejo nenhuma placa. Uma mulher vestida de preto, que limpa as vidraças de uma pequena padaria ao lado, faz que não me entende e se recusa a confirmar se estou no local certo.


Alguns passos adiante, na Calle Lope de Vega, localizo o convento da Santíssima Trindade, onde deveria estar o túmulo de Cervantes. Entro no convento, mas a missa terminou, o local está deserto e as pesadas portas da igreja já estão fechadas. Procuro uma placa que justifique minha busca de tantas horas. Não encontro nada. Antes do dia terminar, me contento em admirar demoradamente o conjunto de esculturas na Plaza de España. Do alto do monumento, Cervantes mantém a seus pés Don Quixote e seu gorducho escudeiro, enquanto olha ao longe a modernidade da Gran Via.


Quatro séculos depois, descubro, com desconsolo, que o escritor apagou cuidadosamente seus rastros em Madrid.


Mais um vilarejo sem nome surge na curva da estrada, exatamente igual a tantos outros que deixei para trás na paisagem de La Mancha. Vejo uma antiga igreja românica, anúncios luminosos de cerveja, mas nenhum sinal de Don Quixote. Não existem muitas pistas sobre o local de seu nascimento. De uma forma deliberada, Cervantes também ocultou o lugarejo onde nasceu seu herói. Ele simplesmente escreveu: "Em uma certa aldeia de La Mancha, cujo nome não desejo me lembrar?".


Sigo pela estrada em direção a Consuegra. Terei mais sorte com os moinhos de vento que assombraram o Cavaleiro da Triste Figura? Eu os encontro no Campo de Criptana. Eles ainda estão lá - dos trinta moinhos sobraram onze, imponentes sobre os campos de trigo, que não existiam no século 16. Passo um bom tempo admirando-os de longe, suas pás girando ao vento da planície. Aos poucos, começo a entender que poderiam mesmo ser tomados como gigantes com braços ameaçadores. Mas a cidade está alvoroçada com a festa da colheita do açafrão e os ruídos da multidão nas ruas me chamam de volta ao mundo real.


Me demoro na Espanha além do previsto, mas há mais uma visita por fazer. Procuro Argamasilla no mapa, o local onde Cervantes foi mantido prisioneiro e onde teria escrito os primeiros capítulos de Don Quixote. Mas obras na rodovia me obrigam a um desvio do caminho e deparo com os sinais que indicam El Toboso. Me aguarda uma nova feitiçaria de Cervantes. Seu gênio misturou a lenda e a realidade - na pequena cidade, transformada em monumento cultural, se conserva uma casa completa, com mobiliário, roupas e objetos que pertenceram a Doña Ana Martínez Zarco, a bem amada do Cavaleiro da Triste Figura. Não chego a entrar, pois há uma longa fila de turistas esperando a vez para visitar a casa de uma personagem que nunca existiu: Doña Dulcinea del Toboso.


Antes de retomar meu caminho, releio algumas palavras do prólogo de


Don Quixote, anotados no verso do mapa de viagem:


 "?Mas eu nada podia fazer contra as leis da natureza, segundo as quais cada um de nós gera sua própria imagem, e o que poderia gerar meu cérebro estéril e inculto, exceto a história de um menino magro, pálido e irritadiço, cheio de pensamentos estranhos que nenhuma outra pessoa jamais teve..?"

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