A danosa imprensa

Por Luiz Garcia É boa idéia de juízes e jornalistas discutirem o mal que a imprensa irresponsável pode fazer a cidadãos. Este é, simplificando …

Por Luiz Garcia
É boa idéia de juízes e jornalistas discutirem o mal que a imprensa irresponsável pode fazer a cidadãos. Este é, simplificando um pouco, o tema de um seminário em Brasília, semana que vem, reunindo juízes, advogados e jornalistas. Naturalmente, a mesa ficará mais redonda se a discussão incluir o risco de se impedir a imprensa de trabalhar honestamente, em nome de falsas agressões à privacidade e à honra de alguém. Não há de ser diferente: como seminário não é tribunal, deve-se presumir que as duas faces do problema serão igualmente iluminadas.
(Devo prevenir que sou mestre na arte de falar de improviso: o pensamento é claro, tudo que importa vem à cabeça automaticamente e as palavras fluem com espantosa naturalidade. Infelizmente, tudo isso acontece no caminho de volta para casa. Na hora, é um show de tartamudeio que adormece a metade da platéia que não foi embora. Para evitar mais um vexame, registrarei aqui, em pílulas, o que me parece relevante sobre o tema. Na hora do debate, bastará distribuir exemplares do jornal no auditório. A não ser, claro, que eu me esqueça de levá-los para Brasília.)
Falando sério, acredito que:
1. Não é possível discutir o dano moral, tema central do seminário, sem contrastá-lo com o interesse público. É óbvio que se causou dano moral ao ex-presidente Collor quando se noticiou a lavagem de dinheiro na famosa Operação Uruguai. Mas o interesse público era obviamente prioritário. As coisas se complicam quando as circunstâncias do episódio não têm igual clareza, o que acontece com extenuante freqüência. Resta ao jornalista tomar uma decisão baseada em critérios subjetivos, e correr os riscos inevitáveis. Inclusive o de ser processado.
2. A melhor maneira de reduzir riscos - e isso, senhores juízes, discute-se nas redações há muito tempo - começa e acaba (presumindo-se boa-fé) na obediência a técnicas elementares de apuração de notícias. A mais importante é considerar qualquer denúncia - gravação anônima deixada embaixo da ponte, suspeitas fantasiadas de indícios, distribuídas, em on ou em off por qualquer fonte oficial (o que inclui políticos, procuradores, arapongas e policiais) - como apenas o ponto de partida de uma investigação de responsabilidade exclusiva do jornalista.
3. É preciso que crie raízes nas redações a convicção de que "ouvir o outro lado" é obrigatório, mas não decisivo na decisão de divulgar seja o que for. Ter a oportunidade de responder à acusação não livra o inocente de sofrer o dano moral.
4. O jornalista deve, por princípio, suspeitar da revelação sensacional, que vende jornal e melhora o Ibope. É uma variante da Lei de Murphy : quanto mais sensacional, mais provável que seja mentira.
5. Faz parte da investigação de acusações que podem provocar dano moral apurar os motivos e as vantagens em potencial para o denunciante. Exceto em casos onde o denunciante corre risco de retaliação violenta, é eticamente discutível a decisão de prometer-lhe anonimato. Por exemplo, ao empresário que oferece a gravação provando estripulias de um rival.
6. Entre os fatores que influenciam a publicação de fato danoso está o contraste entre o interesse para o leitor e o sofrimento que a divulgação do fato pode causar. Parte do interesse do público em conhecer certos fatos é curiosidade gratuita e indigna: trata-se de fascínio pelo escândalo, e mais nada. Essa motivação não merece o menor respeito - nem tratamento jornalístico. Jornalista não é polícia: tem o direito e até a necessidade, por limitações materiais, de escolher o que vai divulgar. Nisso, em nada se parece com o representante do Estado.
Espero que essas propostas de comportamento (que são assunto de debate em muitas redações) ajudem a pôr molho numa discussão sobre as responsabilidades do jornalista em face do dano moral. Principalmente se pegar fogo a anunciada guerra de dossiês. Passemos para o outro lado:
1. A expressão "liberdade de imprensa", por mais que nos deixe com os olhos rasos d?água, contém uma deformação. O que vale de fato é o direito da sociedade à informação e o dever da imprensa de mantê-la informada. Por isso, toda limitação imposta à difusão de notícias não atinge apenas supostas prerrogativas de um grupo profissional: afeta um direito essencial da sociedade inteira. Em suma: devagar com o andor na defesa de propostas que limitem a circulação de informações.
2. Tanto Judiciário como Legislativo e Executivo têm no seu passivo grave mancha: a manutenção em vigor até hoje da Lei de Imprensa baixada pela ditadura em 1967. Filha legítima do autoritarismo, ela diz, a propósito de dano moral, que ao arbitrar a indenização, o juiz terá de levar em conta, entre outras coisas, "a posição política e social do ofendido". Ninguém tem vergonha desse monstrinho ter sobrevivido na legislação? Ninguém tem curiosidade de saber por que sobreviveu até hoje?
3. É altamente discutível que o país precise de uma lei de imprensa. Existe um projeto encalhado no Congresso, quase ridículo no seu detalhismo, que pode ser perfeitamente dispensado. Nada impede que calúnia, difamação e injúria sejam tratadas no Código Penal (como aberrações da liberdade de expressão em geral, e não da liberdade de imprensa em particular), assim como a indenização por dano moral ou material seja cuidada no Código Civil, igualmente sem especificação do instrumento que produziu o dano. A maioria das grandes democracias mundiais sobrevive muito bem sem leis exclusivas para a imprensa.
4. A chamada grande imprensa tem recursos, humanos e financeiros, para enfrentar processos baseados na velha lei da ditadura. O mesmo não se pode dizer da imprensa do interior. Principalmente quando processada por membros do Poder Judiciário - o que, como mostram os relatórios anuais da ANJ, acontece com peculiar freqüência.
5. Finalmente, uma informação que não pode surpreender ninguém: a comunicação de massa sempre teve e sempre terá alta margem de erro. E o dano moral, acreditem, acontece mais por erro do que por malévolo desígnio. A imprensa, na verdade, lembra um pouco a democracia: assim que descobrirem coisa melhor, podem jogar no lixo. Mas só então.
* Jornalista. O artigo foi publicado em O Globo de 16/05/2002.

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