A ditadura não acabou

Por Lúcio Flávio Pinto Muitos soltaram foguetes pela decisão do STF, de acabar com uma das mais nefastas criações da ditadura: a Lei de …

Por Lúcio Flávio Pinto

Muitos soltaram foguetes pela decisão do STF, de acabar com uma das mais nefastas criações da ditadura: a Lei de Imprensa, de 1967. Mas a festa pode ter sido precipitada. E sem motivo real.


País paradoxal é o Brasil. Comemorou-se, como conquista cívica, a revogação de um dos instrumentos jurídicos mais reveladores do que foi o regime de exceção instaurado em 1964 e que subsistiu, pelo exercício da força, até 1985: a Lei de Imprensa. Porém, os que mais a combateram - ou dela foram vítimas - não tinham motivos suficientes para fazer festa com a decisão tomada na semana passada pelo Supremo Tribunal Federal, que declarou a inconstitucionalidade da lei 5.250, de fevereiro de 1967. Esse travo amargo contrastou - e de certa forma comprometeu - a versão difundida através da (e pela) grande imprensa nacional: de que o último entulho autoritário da ditadura finalmente fora sepultado, depois de vagar por 30 anos como um fantasmagórico personagem shakespeariano, em busca de identidade. O país reconquistava a plena liberdade, com a eliminação das peias que ainda constrangiam o direito à informação.


Um clima de perplexidade retirou o tom categórico dessa interpretação instantânea. Mal foi concluída a votação no STF, já surgia uma dúvida técnica sobre a execução da decisão: qual seria o destino de milhares de processos que tramitam em todo Brasil (oito contra mim em Belém, por exemplo) com fundamento na lei extinta?


A dedução lógica é de que sejam também extintos, como efeito automático, até mesmo por gravidade ou inércia, do impulso dado na instância máxima da justiça. Mas não há embaraço processual algum para que qualquer julgador tome outra deliberação. Como reenquadrar a ação no Código Penal, que possui em seu texto previsão para os mesmos delitos capitulados na Lei de Imprensa, ou abrir prazo para tal iniciativa por parte do autor. Nesse caso, as vítimas da nefanda lei terão comemorado a vitória com precipitação.


Esse primeiro incidente foi sucedido por outro, menos por seu significado remissivo e mais por seus desdobramentos futuros: o direito de resposta. Essa prerrogativa, que estava regulamentada na Lei de Imprensa, não encontra guarida no Código Penal e é abrangida pelo Código Civil apenas para efeito indenizatório. Mas está tutelada pela carta constitucional, se manifestaram logo alguns advogados. Eles e outros intérpretes da deliberação do STF afastaram toda e qualquer dúvida. Argumentaram que a Constituição de 1988 dispensa qualquer nova providência legislativa para suprir eventual vácuo. Alguns dos seus comandos, com ênfase no enciclopédico e imenso artigo 5º, seriam suficientes para regular a questão a partir do desaparecimento da lei 5.250.


Rito sumário


Do ponto de vista da democracia formal, não há a menor dúvida. Da perspectiva da democracia real, porém, existem problemas. No caso do direito de resposta, a norma constitucional não se distingue do que prevê a Lei de Imprensa dos militares e a sua antecessora, a lei da IV República, de 1953: o cidadão prejudicado tem o direito de requerer a publicação da sua resposta a qualquer matéria da imprensa que considerar ofensiva, danosa ou prejudicial, na exata proporção da publicação original. Mas não é tão incomum quanto parece a frustração dessa iniciativa por conta da recusa do órgão da imprensa a reconhecer o direito ou sua aceitação apenas parcial. A resposta não ocupa o mesmo espaço da matéria original, não aparece no mesmo local ou então é editada, com o corte feito pela redação.


Em qualquer situação, o cidadão pode recorrer à justiça para fazer valer o seu direito de resposta. Mas quantos se dispõem a essa via, ou têm condições de suportar as custas judiciais? E quantos, ao fim do processo, que costuma ser demorado e não tem como regra seu deferimento, sentem-se reparados de verdade?


O roteiro desse tipo de demanda, sobretudo nos últimos anos, e com ênfase ainda maior desde a vigência da "Constituição cidadã" de 1988, mostra que o poder de arbítrio dos juízos singulares de 1ª instância tem crescido em demasia, não encontrando limites nem mesmo nos marcos dos dispositivos legais. Por característica pessoal, mas também - e em especial - por estímulo que vem da hierarquia superior, os julgadores exorbitam em escala crescente. Não só em matéria do chamado "delito de imprensa" (uma anomalia que se tornou rotineira pela tradição de repressão à liberdade de expressão no Brasil), mas em todas as matérias. Quanto mais controversas, mais o alvedrio do juiz se encrespa.


*O artigo foi publicado originalmente no site www.observatoriodaimprensa.com.br

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