A Espada de El Cid

Por J. A. Moraes de Oliveira Nem eu nem o Armando Kuwer tínhamos a intenção de falsificar a espada que ajudou a expulsar os …

Por J. A. Moraes de Oliveira

Nem eu nem o Armando Kuwer tínhamos a intenção de falsificar a espada que ajudou a expulsar os mouros da Espanha sob o reinado de Afonso VI.


Nossa idéia era usar réplicas de espadas famosas em uma série de anúncios para uma importante marca de talheres de aço inoxidável. O cliente era muito exigente e havia solicitado uma campanha criativa e original.


Depois de muito discutir, decidimos mostrar texturas de metal enferrujado para contrastar com o brilho das facas, garfos e colheres.


O Kuwer saiu para visitar depósitos de sucata atrás de grandes peças de ferro e eu fui pesquisar espadas de guerreiros famosos, que rendessem textos relacionados à beleza e qualidade do novo produto. Depois de dois dias de garimpo, Kuwer voltou com duas preciosidades no porta-malas do seu Oldsmobile 88: um grande pedaço de casco de navio e uma enferrujada corrente de atracação.


Colocamos as peças no chão do departamento de arte, fazendo uma enorme sujeira, e começamos a trabalhar nos anúncios. Quando o Kuwer perguntou pelas espadas, mostrei-lhe o resultado das pesquisas em enciclopédias e livros de história. Eu encontrara muitas espadas com lendas, mas como precisávamos apenas de três anúncios, escolhemos um gládio romano,


a Excalibur do Rei Arthur e a espada de batalha de El Cid Campeador.


Em pouco tempo, já tínhamos os primeiros lay-outs e os textos. O anúncio de lançamento mostrava o brilho de um jogo de talheres de aço inoxidável, contrastando com a placa de ferro enferrujado. Os outros anúncios colocariam as facas de design moderno ao lado de réplicas de espadas famosas, patinadas pelo tempo. Ficamos eufóricos com o resultado e o pessoal de atendimento levou as grandes pranchas coloridas para a aprovação do cliente.


Na manhã seguinte, irromperam gritos de alegria no departamento de criação; corri para lá e o "alemão" Kuwer me deu um grande abraço, dizendo que a campanha estava aprovada e que era urgente finalizar os anúncios, pois as artes-finais precisavam ser enviadas em uma semana para as revistas.


Olhamos um para o outro com a mesma dúvida. O anúncio da chapa


estava resolvido, mas e as réplicas de espadas para os demais anúncios?


O Kuwer deu sua risada irônica, como se dissesse que o departamento de espadas era de minha responsabilidade, e foi cuidar de transportar sua sucata de 100 quilos para o estúdio fotográfico.


O pessoal de produção se dedicou a localizar serralheiros capazes de reproduzir com perfeição as três espadas antigas. De volta à minha pesquisa, encontrei várias ilustrações de gládios romanos e da Excalibur do Rei Arthur. Mandamos cópias das ilustrações para o serralheiro que se dispusera a fazer as réplicas, cobrando uma pequena fortuna, mas isso não era problema, pois o cliente insistira em peças perfeitas em seus anúncios.


Mas e a espada do El Cid? Depois de dois dias, eu ainda não encontrara uma ilustração que mostrasse sua verdadeira espada. Os relatos históricos registravam que ele havia usado várias espadas, inclusive uma sarracena, quando foi lutar ao lado dos mouros.


Apelei então para um catedrático de história ibérica, que discorreu por horas sobre o papel do El Cid na libertação da Espanha da dominação moura.


E concluiu exibindo uma foto da Catedral de Burgos, onde se encontra o túmulo do herói e de Ximena, sua mulher. Mas quando perguntei pela espada mata-mouros, o professor deu de ombros e disse que as lendas mencionavam La Tizona, que ele teria usado na libertação de Valencia.


Mas, infelizmente, não existia uma ilustração da famosa espada.


Ele tinha apenas uma foto da estátua do grande guerreiro na praça de Burgos, empunhando uma espada e olhando o horizonte em busca de inimigos. Era o melhor que eu tinha e, no mesmo dia, enviei a foto para o serralheiro, enquanto me dedicava aos textos dos anúncios. A campanha ficou pronta em tempo e o cliente elogiou a criatividade da agência. E ainda comunicou que enviaria cópia dos anúncios para a matriz na Alemanha, que estava interessada em incluir nossa campanha no portfolio mundial da marca.


Duas semanas depois, as revistas de circulação nacional publicavam nossos anúncios. O Kuwer e eu trocamos sorrisos de satisfação, ao folhar as revistas na banca da Praça da Alfândega. Tínhamos cumprido a missão e recebido elogios do cliente e dos diretores da agência. No carro, Kuwer perguntou casualmente, como quem não quer ouvir a resposta:


"Tu tens certeza que usamos a espada certa?"


"Claro" -  respondi -  "é a reprodução exata da espada que está na estátua, defronte à catedral em Burgos". O Kuwer mostrou um de seus sorrisos irônicos e não disse mais nada.


A campanha foi um grande sucesso, a matriz do cliente na Alemanha enviou uma carta com cumprimentos e a agência ganhou medalha de ouro com a melhor campanha para revista naquele ano.


Mas havia alguma coisa que continuava me incomodando.


Poucos anos depois, em viagem pela Espanha, passei por Burgos e fui visitar a catedral e o túmulo do herói da reconquista. Na praça, sua imponente estátua, com a famosa espada desembainhada. Finalmente, minhas dúvidas estavam resolvidas e não havia mais o que procurar.


Dias mais tarde, de volta a Madrid, fui dar um passeio por um dos mais charmosos lugares da cidade - o Parque del Retiro. No meio do caminho me deparei com o Museo del Ejército. Em um impulso, entrei e fui direto à Sala de Armas.


E lá estava, em um belíssimo estojo de carvalho e cristal, "La Tizona", a grande espada de D. Rodrigo Dias de Bivar, que ele usou contra os mouros na ultima batalha de Valencia.Fiquei por ali algum tempo, fascinado por aquela peça, carregada de história e de heroísmo.


A réplica que eu usara no anúncio não tinha nada a ver com a espada de El Cid.

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