A imprensa e a fala do poder
Por Eugênio Bucci No dia 8 de agosto de 1977, o jurista Goffredo Telles Júnior, professor do Largo São Francisco, leu durante um ato …
Por Eugênio Bucci
No dia 8 de agosto de 1977, o jurista Goffredo Telles Júnior, professor do Largo São Francisco, leu durante um ato público nas Arcadas a sua "Carta aos Brasileiros", hoje um documento célebre da História do Brasil. Assinada por vários outros nomes do mundo jurídico, a carta afirmava que a diferença entre a ditadura e a democracia não podia mais ser disfarçada, e caracterizava o regime brasileiro como ditatorial.
Pedia o "Estado de Direito Já!" O ato da Faculdade de Direito mereceu intensa cobertura nos jornais. Nos dias subsequentes, os debates se estenderam à Câmara dos Deputados. No dia 10 de agosto, o deputado Freitas Nobre, então líder do MDB, pediu a palavra no plenário para saudar a leitura da carta. Foi aplaudido. Em seguida, Cantídio Sampaio, líder da Arena, o partido da ditadura, solicitou um aparte. O presidente da Casa, Marco Maciel, concedeu-lhe a palavra.
O líder da Arena falou: "Sinceramente, não encontramos aqui um pensamento inédito. Os jornais, que são o grande veículo desta campanha articulada que essas organizações se apostam, têm acolhido trabalhos de juristas como Seabra Fagundes, Aliomar Baleeiro e outros tantos, muito mais profundos, mais significativos e muito mais abrangentes, mas todos eles, senhor presidente, pecando por pretender abarcar a complexidade do problema político brasileiro apenas pelo seu aspecto jurídico."
Esses debates, transcritos no livro Estado de Direito Já! - Os trinta anos da Carta aos Brasileiros, organizado por Cássio Schubsky, Flávio Bierrenbach e Almino Afonso (São Paulo: Lettera.doc, 2007, páginas
Depois da ditadura, muitos foram os governantes que se declararam vítimas das notícias. Paulo Maluf e Orestes Quércia,
A imprensa cometeu injustiças contra Paulo Maluf, Orestes Quércia, Fernando Collor e outros? É evidente que sim. Maluf chegou a ser atacado por sua origem étnica, numa agressão inaceitável. Exagerou-se, também, contra Quércia e contra Collor, cujo ministro da Saúde, Alceni Guerra, sofreu barbaramente com acusações infundadas. Mesmo contra algumas autoridades da ditadura é possível que os jornais tenham agido de modo reprovável aqui e ali. Jornalistas erram, e muito.
Donos de veículos de comunicação erram também - e às vezes de propósito. Com frequência, instrumentalizam as coberturas para prejudicar adversários e promover seus interesses empresariais. Tudo isso é lamentável e requer a ininterrupta vigilância da sociedade. No fundamental, porém, quando fiscaliza o governo e procura apontar desvios, a imprensa cumpre o seu dever institucional. Quanto a esse papel institucional, os governantes deveriam ser sempre respeitosos. Sobretudo na democracia. A imprensa livre, que é aquela que critica o poder, não é inimiga de quem governa. Ela é indispensável à cidadania e, nesse sentido, é essencial para a saúde do próprio governo.
Infelizmente, parece que ainda não assimilamos bem essa verdade. Na terça-feira, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, proferiu um longo discurso, de cerca de 50 minutos, para um grupo de 3.500 prefeitos reunidos
Lula disse mais: "Não é porque a imprensa me ajudou que fui eleito, mas porque suei para enfrentar o preconceito e o ódio dos de cima para com os debaixo." Pelo que se nota, ele procura falar como alguém "de baixo". Mas não é isso o que ele é. Ele é o presidente da República. Está no poder há seis anos. Fala a partir do poder. Fala como poder. E aí, no poder, ele precisa, sim, ser fiscalizado e criticado. Normalmente. No mais, não é verdade que a imprensa vocalize apenas "o preconceito e o ódio dos de cima contra os debaixo", por mais que os meios de comunicação no Brasil tenham errado em sua pauta e em seu enfoque. Na democracia, a imprensa é uma instituição, maior que o somatório dos veículos noticiosos, e ao Estado não cabe julgá-la. Simples assim. Avaliar e criticar a qualidade do noticiário é tarefa indelegável da sociedade.
Não há "campanha articulada" dos jornais contra o governo. Não havia nos tempos de Cantídio Sampaio e não há agora. Se quem governa não entende o que é o dever institucional de informar a sociedade, as coisas ficam mais difíceis.