A liturgia do cargo

Por Iraguassu Farias

Vivemos tempos um tanto confusos.
Dias atrás um professor de Direito disse: "Não sabemos mais o que ensinar".
Certamente o que ele queria ter dito é que algumas máximes estão sendo soterradas. Tipo a que assevera que "não há crime sem lei anterior que o defina", ou "a inocência é presumida sempre, até prova em contrário", ou, ainda, "decisão judicial é para ser cumprida".  Enfim, ensinamentos pétreos vão sendo atropelados ao sabor dos interesses, fazendo com que a alta corte do País se comporte, por alguns de seus membros, como verdadeiros mercadores de interesses nem sempre nobres.
Mas eu queria falar mesmo era da liturgia do cargo. E não tem como falar disto sem olhar para o comportamento dos mais altos mandatários da República, e vê-los num comportamento muito distante do que a tal liturgia do cargo recomenda. Pode ser, sim, no trato do apartamento em Salvador, como pode ser no telefonema grampeado sem autorização judicial.
Voltamos a tempos primórdios quando abandonamos a liturgia do cargo, aquela que exige do detentor dele, educação, senso, cuidado, apuro, refino. Muitos de nós, vez ou outra, ocupamos funções honoríficas por delegação de colegas de classe, por eleição, por aclamação, que seja. Aceita a indicação, escolha, eleição, cabe ao ungido, entender que não fala mais por si. Fala por uma classe. Tal qual um político - ou não, que ocupa um mandato, fa-lo-á (está na moda) dentro dos ditames que a liturgia do cargo lhe impõe. Assim é que se espera que um presidente de clube de futebol, presida-o com galhardia. E não é porque ele deixa funções remuneradas e assume uma que não é, que lhe é assegurado o direito, por exemplo, de receber vantagens na negociação de jogadores. Bem, aí já falo de outros "valores" (não confundir com valores de transações de jogadores).
Mas o que eu queria falar mesmo, era da liturgia do cargo. Aquela que, mesmo não escrita, surge como algo do tipo "missão e valores", sabe?
Um dirigente classista está dirigente. Não o será para sempre. Ou então não é dirigente classista.
E as pessoas que vez ou outra ocupam estas delegações devem honrar a entidade, a classe.  Não imaginar que, por que estão dirigentes, venham a ter direito de ameaçar, enxovalhar, fazer pouco caso de outrem, como se este direito - que a bem da verdade deveria vir de berço, lhe fosse outorgado pelo simples fato de ser um dirigente.
Já fui dirigente classista, e confesso que se a gente não cuida, a posição nos engole e nos transforma. Às vezes até nos proporciona - foi o meu caso, uma notoriedade maior do que a que proporciona nossa atividade empresarial. Eu sei? é difícil.
Mas não podemos nos iludir. É passageiro. Se faço um bom trabalho, saio consagrado do meu mandato (o que aconteceria hoje com Romildo Bolzan, concordam?). Se não faço, acrescento mais uns nomes no meu cartel de desafetos. Como eu dizia, não dá pra se iludir. Primeiro, porque a gente não agrada todo mundo. E em segundo lugar, e mais importante, porque o cargo honorífico que me foi outorgado não inclui salvaguardas morais. Se sou malcriado, se sou egoísta, se sou manipulador, se sou agressivo e rancoroso, certamente estas características aparecerão vez ou outra, exatamente porque o cargo não as apaga. E há um agravante: agora, no cargo, minhas mazelas serão quase sempre públicas, pela simples razão que não vou mudar meu jeito de ser só porque sou presidente da "Associação Regional dos Prefeitos".
Então, povo, vamos registrar: quem me escolhe, não me outorga o direito de representá-lo da mesma maneira como administro minha empresa, ou como trato meus funcionários. Lá, onde sou dono, mesmo que com consequências nem sempre boas (a teoria do assédio moral está em voga), posso ser grosso, ameaçador, autoritário, arrogante. Lá, eu aguento as consequências.
Quando represento uma classe ou amigos, ou interesses corporativos, devo pensar, pelo menos, em ter um comportamento médio em relação àqueles a quem represento.
Como não sou senhor da razão, acho que poderá haver alguém que discorde. Afinal, o Renan não assinou a ordem judicial. E deveria ser um dos primeiros a fazê-lo, porque é presidente de uma casa legislativa, aquela que faz as leis. Leis que ele deveria cumprir.
Tempos confusos vivemos.
Iraguassu Farias é sócio-diretor do portal Coletiva.net, respondendo pela área Comercial e de Relacionamento.

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