A modernidade foi ontem

Por Alexandre Figueiredo A modernidade foi ontem Recentemente (outubro de 2003), o veterano ator francês Alain Delon publicou manifesto dizendo que o cinema acabou. …

Por Alexandre Figueiredo
A modernidade foi ontem

Recentemente (outubro de 2003), o veterano ator francês Alain Delon publicou manifesto dizendo que o cinema acabou. Ele havia anunciado sua aposentadoria artística em 1998, desiludido com os rumos do cinema (entregue ao comercialismo, mesmo quando aborda temas de cunho social ou polêmico) e triste com a morte de tantos amigos, entre atores, cineastas e outras celebridades, com os quais conviveu nos áureos tempos de sua carreira. Ele afirma que o cinema é uma obra coletiva, e por isso sente falta da cumplicidade dos nomes de sua geração. Delon havia até se separado de sua última mulher, bem mais nova do que ele, porque ela não compreendia, por ser de outra geração, as tragédias relacionadas à geração do ator.
Para muitas pessoas, hoje em dia, o manifesto de Delon é pessimista. Com o deslumbramento do tempo presente, as pessoas da atualidade, principalmente as mais jovens, estão descobrindo a cultura, a liberdade de expressão, a tecnologia e a moda. No entanto, os tempos hoje são bem mais medíocres. Ter qualidade artística, talento autêntico e mesmo uma trajetória honesta se tornam virtudes secundárias. E, diante da mediocridade reinante, o que era normal (ter talento, competência e integridade) se tornou excepcional.
A modernidade foi ontem. O cenário cultural de 40 anos atrás era sublime. Não que inexistam grandes expressões culturais nos últimos anos. É que hoje elas estão marginalizadas, não podem ser assimiladas pelos seus públicos-alvo, para os quais são impostas uma infinita sucessão de nomes medíocres, que reproduzem fórmulas antiquadas, "requentadas" ou artificialmente remoldadas pela indústria. De moderno, tais ídolos de proveta só possuem o marketing. Realizavam-se excelentes festivais de música brasileira no início dos anos 60. Hoje, tal tarefa é praticamente difícil, para não dizer impossível.
O saudosismo de pessoas como Alain Delon e tantos outros, com maior ou menor teor de pessimismo ou de contestação aos tempos atuais, revela uma situação que não se deve ignorar. Até pouco tempo atrás, ser saudosista era considerada atitude inútil, de pessoas ranzinzas, desocupadas. Mesmo quem tinha senso crítico admitia isso, até meados dos anos 90, quando os modismos que desqualificaram a música, o cinema, o rádio, a TV e a imprensa mostraram que o "mundo das novidades" da atualidade se expressa como um quase vazio. O rock de Seattle, denominado grunge, e a música eletrônica moderna não conseguiram oferecer respostas à juventude, sendo apenas modismos que fizeram ainda mais agravar a mesmice que toma conta do mainstream. E o "passado" vem para tentar responder às questões que o "presente" e o "futuro" (os modismos emergentes) não conseguem responder.
Nomes engraçadinhos
A humanidade das sociedades modernas, governadas pelo neoliberalismo, ficou muito pragmática. Pouco se tem noção do que é qualidade cultural, e isso não se manifesta claramente. Perguntando a cada uma dessas pessoas o que significa qualidade, ou, mais simplificado, "o que é o melhor para isso ou aquilo?", elas dão a impressão de ter a resposta na ponta da língua. Para a educação, fala-se em "cidadania". Para os meios de comunicação, em "informação e prestação de serviço". Para a vida amorosa, leva-se mais em conta as finalidades úteis (capacidade de proteção ou sustento do macho e alguma beleza física da mulher, não aquela beleza que encanta e agrada, mas a que é socialmente aceita). Para a política, apela-se para uma palavra remanescente do já desusado vocabulário rebuscado, tão em voga nos tempos de Olavo Bilac: "idôneo", palavra simples mas erudita que significa algo como "competente" e "íntegro".
Para verificarmos esse pragmatismo, que atende às finalidades imediatistas de cada atividade humana, alguns exemplos aparecem, relacionados a fenômenos de mídia. O cinema brasileiro, por exemplo, vive o modismo das temáticas da violência e da pobreza, como se isso em si representasse "qualidade". Qualquer filme com esses temas é classificado como "vanguarda", e, pasmem, muitos desses filmes, mesmo claramente (mas nem sempre assumidamente) comerciais, ainda são vistos por muitos jovens deslumbrados como sendo "filmes alternativos". Qualquer novo esquisito do mainstream musical que aparece nas rádios também é underground, para uma demanda que imagina que mainstream é só música popularesca e tema de novela da Globo.
No Brasil, isso é muito grave. Vemos um contraste enorme entre o que era música popular há 40 anos e o que se diz ser "música popular" hoje em dia. É covardia comparar o sambalanço carioca de Orlan Divo, Ed Lincoln e Durval Ferreira com o abjeto e comercialíssimo pagode baiano de grupos com nomes engraçadinhos, como Os Sungas, Oz Bambaz (é essa grafia mesmo), Psirico e Dignow. Se olharmos pragmaticamente são dois cenários de "samba dançante", com jovens empolgados indo a bailes, ouvindo discos e cantando suas músicas. No entanto, a qualidade, a integridade, o talento, se devem exclusivamente ao antigo sambalanço, que ensaia um retorno no Rio de Janeiro, com a mesma pirataria de CDs que irritaria ferozmente um Xanddy (do Harmonia do Samba), salvando Orlan Divo do ostracismo. Hoje ele, já idoso mas com aparência saudável e jovial, voltou a fazer concertos e foi convidado até para gravar disco para o mercado europeu.
Praga contra a língua
O grande problema que atinge o Brasil, nos aspectos culturais, é tanto o analfabetismo total e até parcial (quando a pessoa sabe ler e escrever algo, mas não tem o menor discernimento sobre as coisas) da maior parte da população como na incompetência e no oportunismo dos empresários do meio artístico e mediático. A maioria dos ídolos popularescos, os mesmos que, patrocinados pela Rede Globo, ainda brincam de ser "cantores de MPB", massacrando alguma preciosidade do nosso cancioneiro - a ponto de um deles fazer o mesmo até para o presidente de uma das nações mais ricas do planeta -, teve algum grande empresário, às vezes um político, como "pistolão". Monta-se até uma "novelinha mexicana": a dupla breganeja que surgiu da pobreza no interior do Brasil, as dançarinas de pagode que "suaram" para conquistar seu espaço (e vale lembrar do ridículo de atribuir status de "músico" às calipígias que animam shows de grupos de pagode), ou aqueles MCs de subúrbio que recebem louvores até de ídolos de MPB mais condescendentes, como um certo ministro de Estado.
Hoje a mídia anda muito desqualificada. A burrice é difundida até mesmo depois de queixas de leitores ou internautas. É porque virou vício, mesmo em pessoas bem-intencionadas. A corrupção semântica do termo "banda", que veio a "abrigar" grupos musicais sem instrumentistas, contrariando a natureza original da palavra, apesar de seu uso hoje ser menos freqüente do que há um ano, ainda assombra as linhas impressas, e até o jornalista da Folha de S.Paulo Thiago Ney caiu na pegadinha. Em entrevista ao Front 242, Ney citou o caso de uma "banda" que sampleou os sons eletrônicos da música Headhunter, do grupo belga Front 242. Só que o grupo que realizou a "façanha" (que resultou em processo movido pelo grupo belga), o Bonde do Tigrão, só tem um DJ e alguns MCs e dançarinos - portanto não se trata de uma banda, mas apenas de um grupo, de um conjunto musical de "batidão" (ritmo erroneamente rotulado de "funk").
A praga contra a língua portuguesa continua sendo a palavra "balada", agora "obrigatória" em qualquer reportagem relacionada à vida noturna, à juventude e aos DJs. Só que "balada", na verdade, quando relacionada a "festa", só existe em duas possibilidades: recital de piano erudito no Teatro Municipal ou então uma tragédia como as trágicas explosões de casas noturnas que aconteceram em países como Espanha e Indonésia, causadas por acidentes ou pelo terrorismo. É que "balada" significa, não custa lembrar, "música lenta" ou "história triste". Nada de "agito".
Saudade de tudo
A decadência da mídia atual, a alienação por parte de jornalistas mais jovens, que têm que se desdobrar para conhecer coisas que pouco antes desconheciam quase que por completo, já fez das suas na veiculação de informações equivocadas que na sua presunção não são devidamente corrigidas. Uma jornalista baiana escreveu errado o nome de duas bandas punk britânicas, Undertones e Buzzcocks, escritas como Ander Tonys e Bozy Cocks. O autor deste texto mandou carta ao jornal pedindo correção, mas não houve uma errata sequer.

Com tudo isso, a mídia ajuda na desqualificação cultural, na confusão de dados transmitidos à opinião pública, na exaltação de ídolos postiços, que se valem pelo subjetivismo piegas para prevalecerem na mídia (como pagodeiros criarem projetos filantrópicos ou coverizar algum clássico do samba para dissimular sua falta de talento), o que acaba causando sérios prejuízos culturais e sociais. Não se condicionou a democracia e a liberdade de expressão, no sentido de promover a inteligência, a sensatez e melhor cuidado nas informações.

Daí a saudade de tempos em que na mídia predominavam pessoas mais talentosas, jornalistas mais dedicados, textos mais elaborados, e ídolos com um mínimo de autenticidade e talento. Daí a saudade de tempos em que a indústria cultural era movida por pessoas que gostavam e entendiam de arte e cultura, e não por gente que, hoje em dia, mercantiliza a cultura, as emoções, os sonhos e as esperanças de um povo que hoje é carente de tudo: de dinheiro, de justiça social e até de sólidos referenciais culturais.
* Alexandre Figueiredo é jornalista. Este texto foi originalmente publicado no site www.observatoriodaimprensa.com.br.

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