A Ponte Marco Polo não Existe (II)

Por Sérgio Capparelli Foi pensando nisso que eu telefonei para o Fonseca, que também mora em Pequim e perguntei se ele me ajudaria a …

Por Sérgio Capparelli

Foi pensando nisso que eu telefonei para o Fonseca, que também mora em Pequim e perguntei se ele me ajudaria a verificar se é verdade que essa ponte é de mentira . Ele perguntou, qual ? Eu disse, Lugouqiau ou Marco Polo. Ele respondeu, tenho um mapa e te digo.


Acontece que o Fonseca está na China e os mapas chineses são chineses. Mas assim mesmo ele localizou Lugouqiau ou Marco Polo no mapa . Eu perguntei, a que distância . Ele pediu tempo , pegou uma régua e calculou a escala do mapa . Do outro lado da linha , eu ouvia seus cálculos , 5,5 quilômetros por centímetros , são quatro centímetros e temos então 22 quilômetros .


De bicicleta ?, eu perguntei. Ele respondeu que continuavam sendo os mesmos 22 quilômetros precedentes. Eu respondi que 22 quilômetros de bicicleta é uma distância muito maior do que 22 quilômetros de avião , você não acha ? Longo silêncio do outro lado . Por fim ele perguntou, aonde você quer chegar ? Eu respondi, à ponte Marco Polo, Lugou ou ao Xiaoyué, qualquer um desse lugares para mim está bem , vamos?


Ele aceitou, peguei minha bicicleta , pus uma kekoukele na mochila , que significa coca-cola, mais cinco maçãs e comecei a pedalar .


A manhã não estava nem quente nem fria , mal prenúncio , pensei, estou precisando de eventos estáveis . E me corrigi, achando que nenhum movimento poderia ser estável , porque a estabilidade existe? bom, deixa pra , me disse, eu sei esse equilíbrio instável que tento construir em cada 72 horas que o dia tem.


Mais adiante fui surpreendido com o chilreio de centenas de pássaros , em centenas de gaiolas carregadas por centenas de bons velhinhos. Me deu vontade de parar e ficar nesse jardim o resto da vida . Mas não podia fazer isso . Tinha de ir à ponte que não existia, sobre um rio que não existia, numa Yanjing que também não existia. Mas aquele canto me fez bem e eu me disse, se daqui até a ponte são 1.500 quilômetros , certamente os passarinhos reduziram essa distância para menos de 100.


Não sei se vocês sabem, mas mandei instalar um contador de quilômetro na panturilha. Quando eu saí de casa , tinha zerado o contador , mas quarenta minutos depois , pedalando com o Fonseca ao lado da auto-estrada , passando por pequenas vilas onde lavam carro por R$ 1,50 - lavagem completa - senti uma fisgada no marcador de quilômetros e parei, para verificar . Marcava 400 quilômetros . Eu disse para o Fonseca, paro por aqui ou me traga os bons velhinhos com as gaiolas dos passarinhos.


Ele não entendeu. Como ele não entendeu, a distância aumentou para 450 quilômetros . Então eu pedi para ver o mapa . Ele perguntou se eu estava desconfiando das informações que ele tinha me passado pelo telefone . Respondi que não , mas certas coisas prefiro saber utilizando meus próprios meios . Ele me apontou Ponte Lugou ou Marco Polo em chinês. Eu disse que os caracteres hanzi estavam um pouco confusos. Eu perguntei se não tinha uma parte no mapa em outra língua . Ele disse que do outro lado havia explicações sobre o funcionamento do mapa .


Eu li e comecei a tremer .


Estava escrito assim : "Esse não é bem um mapa mas um jogo. Mudamos todas as informações de lugar , para que você possa fugir essas aborrecidas excursões . Se está procurando a Cidade Proibida , por exemplo , seguindo nosso mapa poderá chegar a um belo mictório público . E ao se dirigir à Ponte Lugou ou Marco Polo, poderá encontrar coisas muito melhores ou muito piores ".


" tinha lido isso ?", eu perguntei.


Ele respondeu que sim , tinha lido, e por que eu estava interessado em suas leituras ?


"Tem que se guiar pelo mapa e não pelas minhas preferências".


Essa, agora !


Olhei a auto-estrada , com bilhões de carros passando, a luz do sol arrancando zilhões de reflexos nos pára-brisas . Olhei de novo para o contador na minha perna . Eu tinha pedalado 4.700 quilômetros , quase a distância da terra à lua .


Então eu me sentei na beira do caminho , emocionado. Fonseca quis saber o que estava acontecendo. Eu respondi que ali , numa Yanjing que não existia mais dentro de uma Beijing que ainda existia, mas que estava deixando de existir , eu me lembrava do Erasmo Carlos, cantando com a Ternurinha Vanderléia, o sucesso Sentado à Beira do Caminho . E acrescentei: "Era um prenúncio dessa viagem tanto tempo depois".


Fonseca disse, acho que o sol está te fazendo mal , cara , pois estás viajando demais . Dito e feito . O contador de quilômetros na minha perna começou a apitar de forma intermitente .


Saimos dali o mais rápido possível antes que chegasse toda a Jovem Guarda , mascando chiclé e dizendo "é uma brasa , mora !"

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