Alguns são mais iguais

Por Eliziário Goulart Rocha Em tempos de guerra ou sob regimes totalitários, artistas, jornalistas e intelectuais de todos os gêneros convertem-se em vítimas preferenciais. …

Por Eliziário Goulart Rocha
Em tempos de guerra ou sob regimes totalitários, artistas, jornalistas e intelectuais de todos os gêneros convertem-se em vítimas preferenciais. Compelidos pelas inquietações do ofício, tendem a desafiar sistemas destinados à promoção de morte e destruição. Natural, embora lamentável, que as estatísticas contemplem tais fileiras com maior número de tombados em combate. O assassinato do correspondente do Wall Street Journal em Karachi, no Paquistão, provocou invulgar mobilização da mídia. A singularidade da morte de

Daniel Pearl, degolado e decapitado pelas mãos de terroristas, lhe confere a condição de mártir em potencial.
A glamurização do próprio trabalho, só ocasionalmente justificada, e o temor de integrar a lista de vítimas podem levar nós, jornalistas, a valorar de maneira diferenciada vidas de colegas. O caso Pearl, sob qualquer ângulo, impressiona pela barbárie, não há dúvida. Como chocaria se ele exercesse a medicina, a biologia ou a arquitetura. O comportamento midiático, no entanto, dificilmente seria o mesmo.
No clássico A Revolução dos Bichos, publicado em 1945, sob os escombros da Segunda Guerra Mundial, assombrados pelos fantasmas do nazismo, do fascismo e do stalinismo, George Orwell cunhou a célebre expressão "todos são iguais, mas alguns são mais iguais". Numa comunidade de animais, são criados sete mandamentos. O principal prega: "Todos os animais são iguais", em referência ao suposto fim da discriminação com que eram tratados pelos humanos até então. Como ocorre em qualquer grupo organizado a que denominamos sociedade, logo uma turma descobre as delícias e os privilégios do poder. Os porcos, raça dominante, vão reescrevendo a história de acordo com seus interesses. O mandamento primordial incorpora um adendo: "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros".
Nascemos condenados à morte, mas é justo ansiar pelas causas naturais, nas quais está embutido o nem sempre cumprido pressuposto da idade avançada. A quebra do protocolo causa revolta. A participação de terceiros e o uso da violência nos lembram uma fragilidade diante do mal que preferíamos esquecer. Qualquer morte é triste, embora natural, e se torna revoltante se for provocada. Qualquer morte. De qualquer ser vivo, sob quaisquer circunstâncias. A carteira de jornalista não torna ninguém mais valioso.
Dedicado a Lauro Schirmer
( [email protected])

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