Ano novo, censura velha

Por Eugênio Bucci Escrevo críticas de televisão há um bom tempo. Além de escrever, ando por aí, por cidades diferentes, falando e ouvindo sobre …

Por Eugênio Bucci
Escrevo críticas de televisão há um bom tempo. Além de escrever, ando por aí, por cidades diferentes, falando e ouvindo sobre o assunto. Estudantes de diferentes níveis, professores, grupos pequenos de profissionais os mais diversos, pesquisadores, penso agora e vejo o quanto andei por aí falando mal da TV (acho que em fim de ano a gente fica mesmo fazendo balanço da vida, o que não leva a nada, mas é assim mesmo). É curioso que, em quase todos os lugares, aparece sempre alguém querendo censura. Imagina-se que ela poderia ajudar a garantir um padrão um pouco melhor para o que se vê na televisão. Quem diz isso, normalmente, mal sabe que ainda existe censura na TV brasileira: censura privatizada. E mal imagina os danos que a censura estatal nos deixou.
Agora que estamos começando um ano novo (e no ano novo a gente sempre faz planos, o que não leva a nada, mas é assim mesmo), acho que, para o bem do futuro da TV e da democracia, não custa tentar espantar uma vez mais o velho fantasma. No imaginário brasileiro, a censura não é, nem de longe, um cachorro morto. (Temo que este artigo me saia muito professoral, mas eu não saberia escrevê-lo de outro modo.) Vamos lá.
Antes de tudo, é preciso definir claramente o que é censura. Comecemos pelo que não é. A edição de um programa jornalístico, assim como a edição de um diário impresso ou de uma revista semanal, não é censura. Apurar e publicar reportagens passa por selecionar, por escolher, por separar o que será do que não será levado ao conhecimento do público. Isso não constitui censura porque isso se destina a atender o direito à informação, de que todo cidadão é titular. Censurar é impedir o cidadão de ter acesso a um conteúdo ao qual ele tem direito de ter acesso, seja porque a sua liberdade individual lhe garante isso, seja porque esse conteúdo é de interesse público. A censura começa a acontecer quando um interesse estranho (do poder econômico ou do poder estatal) se põe, como um filtro indevido, no caminho que vai da liberdade de expressão ao direito à informação.
Pensando nesse filtro indevido, é correto dizer que ainda hoje existe censura na TV brasileira. Existe a censura privatizada, exercida pelos donos das grandes redes. Quando uma notícia relevante não vai ao ar porque incomoda o dono da emissora ou os seus amigos, o que acontece aí não é uma atividade normal da edição jornalística, mas é censura. Privatizada. Exemplo? Simples: pense-se nos comícios e passeatas que, em 1992, pediam o impeachment do então presidente Fernando Collor? Eles mal tinham lugar nos telejornais. Por quê? Porque eram censurados por forças privadas. Tínhamos ali a censura não-governamental. O que, claro, é intolerável e incompatível com o Estado de Direito.
De outro lado, alguns ainda acalentam a ilusão de que, se houvesse um "bom" sistema de censura estatal no Brasil, atrocidades como esses programas de João Kléber e assemelhados não iriam ao ar. Talvez não fossem, mas os malefícios seriam muito piores. O principal dos malefícios é a humilhação sistêmica do cidadão, que passa a ser visto como alguém que precisa de que uma autoridade lhe diga o que é que ele pode ou não pode ver. A TV é a cara do país, com o que ele tem de ruim e de bom. A propósito, se hoje há tanta excrescência na programação, em grande parte ela pode ser atribuída a um efeito retardado da censura que tínhamos nos anos de ditadura. Ao tentar amordaçar a TV do presente, a censura faz isso: distorce a TV do futuro. Isso porque, também no vídeo, o reprimido volta, e volta muito pior.
Nada é mais nocivo para a qualidade da TV do que a censura. Seja a censura privada, que nós ainda temos e que precisa ser banida, seja a censura estatal, cujos estragos podemos sentir até hoje mas que, pelo menos, não existe mais.
* Jornalista. Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 05/01/03.

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