As lágrimas de Antônio Britto

Por José Emanuel Gomes de Mattos Os gaúchos tomaram conhecimento de que no dia 3 de abril um ex-governador do Rio Grande do Sul …

Por José Emanuel Gomes de Mattos

Os gaúchos tomaram conhecimento de que no dia 3 de abril um ex-governador do Rio Grande do Sul chorou. Nem todos souberam a razão das lágrimas de Antônio Britto dentro do prédio centenário da Empresa Jornalística Caldas Júnior.


Nessa hora é necessário ter nobreza de caráter e deixar de lado a opção política, a fim de avaliar com isenção o significado histórico desse fato.


Nos anos 70, recém formado em comunicação, Britto já se destacava nos veículos de Breno Caldas, tanto que trocou a brilhante equipe da Folha da Manhã, dirigida por Ruy Carlos Ostermann, para criar a primeira central do interior do Estado.


No início de 1974, eu iniciava estágio em Zero Hora e sequer o conhecia. Cabeludo, fazia entrevistas triviais no Beira Rio. Britto estava lá e observou. Em abril, com apenas 45 dias de trabalho, fui surpreendido por um telefonema seu.


Na sacada do primeiro andar do prédio Hudson convidou-me para ser repórter na Folha da Manhã, ao lado de monstros sagrados. A partir daí passei a valorizar aquele profissional que discernia um estagiário mesmo entre tantos veteranos.


Nossos caminhos se cruzaram mais tarde, quando deixou o ministério da Previdência de Itamar Franco, abriu mão para Fernando Henrique disputar a Presidência da República, e veio concorrer ao governo do Rio Grande. Convidado, participei ativamente de sua campanha.


Eleito, deu inicio a algumas reformas, como a telefônica, que foi privatizada. Dinâmico, captou duas grandes montadoras: a General Motors e a Ford. Polêmico, contrariou interesses da oposição e de empresários ladinos.


A imprensa foi testemunha - e denunciei publicamente - do escandaloso boicote que sofreu por parte do novo proprietário da Caldas Júnior, fato que praticamente determinou a sua derrota na tentativa de se reeleger, em 1998.


Pior. Mesmo sem mandato eletivo, o veto ao seu nome permaneceu. Tanto que no Coletiva.net escrevi, na data de 27/07/2001, artigo com o título: Quando o jornal briga com a notícia. Sem comentários, reproduzo parte do texto acusatório:


"No futuro, quando alguém pesquisar o atual período da história do Rio Grande do Sul através da leitura de seus jornais, será obrigado a ignorar o centenário Correio do Povo. Por um motivo relevante. Seu noticiário deixou de ser considerado isento, uma vez que a cobertura da atividade diária restringe o acesso de pelo menos um nome fundamental no xadrez político do Estado.


A determinação tem sido cumprida desde a disputa pela privatização da Companhia Riograndense de Telecomunicações. Na época, o proprietário da Empresa Caldas Júnior viu frustrada a sua tentativa de viabilizar um consórcio para disputar o leilão, por não cumprir o que exigia o edital de licitação.


A partir daí, seus veículos de comunicação passaram a restringir o nome do então governador Antônio Britto. Atos relevantes deixaram de ser registrados e sua importância minimizada quando a menção era inevitável.


Pode ser devastador o efeito gerado pela mídia utilizada como instrumento para manipular a opinião pública. Não se deve esquecer que na eleição para governador, em 1998, Britto foi derrotado por exatos 87.366 votos num universo de seis milhões de eleitores."


O artigo trazia outros elementos robustos à denúncia, que deixo à margem. Mas, pela repercussão que teve - como será constatado adiante, transcrevo o final, contundente:


"Em 27/5/98, o então governador e todo seu secretariado assinaram manifesto divulgado na imprensa com o título "Em nome da democracia um apelo ao Correio do Povo". O dono do jornal reagiu no dia seguinte, em editorial de capa: "O governador está acostumado a não ser desobedecido e não tolera conviver com algo que não possa dominar".


Atualmente, há pelo menos um fato novo nesse conflito que se arrasta por cinco anos. Britto não é mais governador. É jornalista, profissão que abraçou há mais de 30 anos. Razão suficiente para que, em nome do bom senso, as respeitáveis entidades de classe, como a Associação Riograndense de Imprensa ou o Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul, fiscalizem o cumprimento do que determina o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros:


Artigo 1º - O acesso à informação pública é um direito inerente à condição devida da sociedade, que não pode ser impedido por nenhum tipo de interesse.


Artigo 2º - A divulgação da informação, precisa e correta, é dever dos meios de comunicação pública, independente da natureza de sua propriedade.


Ou seja, jornal que deliberadamente sonega um fato notório, exclui pessoas ou atos públicos, está desrespeitando princípios fundamentais do jornalismo e da ética da imprensa. Quem comete essa transgressão, briga com a notícia e compromete a credibilidade conquistada durante anos de bom jornalismo."


A empresa quedou-se calada. Porém, o funcionário licenciado do Correio do Povo, Celso Augusto Schröder, diretor e membro do Conselho Fiscal do Sindicato dos Jornalistas do Estado do Rio Grande do Sul e secretário-geral da Fenaj, aceitou o repto lançado por mim e escreveu em 03/08/2001, igualmente no Coletiva.net, artigo intitulado Correio sem povo.


Schröder ressaltou: "Embora em lado contrário da política partidária nos últimos tempos, Emanuel e eu temos concordado em jornalismo desde nossos tempos de Correio do Povo."


Seguem os principais trechos de seu artigo com revelações sobre a forma como agia o dono da Caldas Júnior:


"Uma das regras básicas do serviço público é de ter que atender e prestar serviço a todos, sem restrições. No caso do jornalismo, significa noticiar tudo sempre que for de interesse público. É óbvio que os movimentos políticos de um ex-governador são de interesse público, tanto para seus correligionários e eleitores, quanto para seus opositores. Porém, o sentimento de propriedade de alguns empresários é tão poderoso que empregados públicos e informação passam a ser tratados como extensão de suas contas bancárias.


Embora ache que o ex-governador Britto tenha tido um apoio escandaloso pela rival RBS, em especial na "Página 10" , é inexplicável, ou nem tanto, o tratamento que vem recebendo dos veículos da Caldas Júnior. É verdade que antes dele já o delegado do Trabalho, Vinícius Pitágoras, o presidente do Deprec, Adão Faraco, e seu diretor, Luís Carlos Martins (todos do governo Simon), sentiram o peso de sua parcialidade. Luís Carlos Mandelli, ex-presidente da Fiergs, foi combatido até sua candidatura pelo PPB ser inviabilizada, Raul Pont e os deputados do PT foram proibidos de serem citados, chegando ao cúmulo de, em uma noite, ser tirada do ar uma entrevista do então deputado federal José Fortunatti, no programa de Clóvis Duarte, por ordem direta da direção da empresa.


Isto sem falar na já histórica manipulação das pesquisas de 88, quando tentaram prejudicar o candidato Olívio Dutra nas eleições para a prefeitura da Capital. Centenas de fatos e personagens de maior ou menor relevância têm deixado de ser conhecidos por absoluta mesquinhez e, principalmente, desconhecimento da função social dos veículos como agentes públicos de informação.
Se o contrário também acontece, isto é, fatos e personagens completamente irrelevantes são transformados em notícias, também por desejos inconfessos, o mais grave do ponto de vista social é a odiosa censura, porque ela não permite aos leitores sequer a possibilidade de interpretar a informação."


A resposta do patronato foi irracional. Demitiu Celso Schröder por justa causa. A prepotência do todo-poderoso dono da empresa trombou de frente com a Justiça. Em menos de um ano Schröder, que tinha imunidade sindical, foi reintegrado à empresa e está liberado até hoje, via acordo coletivo, para o Sindicato dos Jornalistas.


Para se ter uma idéia da gravidade do que representou o desvirtuamento da Caldas Júnior nesse período nefasto, eis o trecho publicado no site do jornalista Políbio Braga, que durante anos escreveu a coluna Informe Econômico, no Correio do Povo, e testemunhou o que segue:


"Nas eleições de 1998, dois anos após o veto a Britto, Renato Ribeiro reuniu seus principais editores e colunistas nos seus amplos escritórios da avenida Cristóvão Colombo, numa manhã ensolarada de maio, para comunicar em tom firme, forte e sem admitir contraditório:


- A partir de agora, meu candidato ao governo é o Tarso, mas se não der ele, será o Olívio. Isto quer dizer que o candidato de vocês será o candidato do PT.


Então, o que já era de domínio público, foi oficializado pelo dono da empresa. Britto não teve nenhuma atividade de campanha mencionada no Correio do Povo, Rádio e TV Guaíba.


É importante salientar que a eleição foi decidida no 2º turno, quando Olívio teve 39,83% contra 39,42% de Britto. Houve 824.290 votos brancos ou nulos e 1.023.119 abstenções. Quantos desses 1.847.409 eleitores foram influenciados pelos veículos da Caldas Júnior a se abster, a votar em branco ou a anular seus votos?


Não recomendo tal raciocínio pelo risco de manipulação. Apenas o faço nesse caso porque a ética jornalística sofreu grave afronta e gerou talvez um erro histórico descomunal que jamais poderá ser reparado.


Está provado: não houve neutralidade naquela eleição. E ficaram as seqüelas. Com Britto, a Ford teria permanecido no Estado e impulsionado o parque industrial. É incalculável o tamanho do prejuízo. Como saber quantas empresas foram afugentadas ou deixaram de se estabelecer após a decisão?


Perdeu-se igualmente a sintonia fina que o Rio Grande mantinha com o governo Fernando Henrique, que iniciava seu segundo mandato. Ao contrário, a relação cordial virou briga de bugios. E o Estado mais uma vez terminou prejudicado.


Sem a catastrófica manipulação do dono da Caldas Júnior, provavelmente Olívio Dutra chegaria ao poder no Estado e Lula à Presidência em 2002. Da mesma forma, Olívio seria reeleito em 2006, beneficiado pela "onda Lula". Assim, o Rio Grande poderia ter vivido 16 anos em perfeita harmonia com o governo federal. Com todas as vantagens que isso representa.


Pura ficção. Sempre na contramão da história, o Estado vai - de novo - penar miseravelmente nos quatro anos em que estiver sob o comando de Yeda Crusius, do PSDB, partido que não integra o arco de alianças do segundo governo de Lula.


Como desgraça pouca é bobagem, começamos a perder a identidade. O Pólo Petroquímico foi loteado. A Varig e a Ipiranga, ícones da nossa tradição, vendidas. O Rio Grande virou latrina. O Brasil puxa a descarga e os dejetos caem aqui. Estamos literalmente na merda.


Diante dos fatos expostos e, principalmente, dos personagens nele envolvidos, é inacreditável afirmar que o Rio Grande é o estado mais politizado do Brasil. Somos os mais idiotizados. Qualquer astuto nos faz de otários.


Prova humilhante de submissão está comprovada no episódio contado no site polibiobraga.com.br, revelador de como agia o ex-mandatário do grupo Caldas Júnior em relação àqueles que foram eleitos democraticamente:


"Um livro sobre a passagem do sr. Renato Ribeiro pelo Correio do Povo já está em andamento. Sobre sua posição autoritária no jornal, além do episódio com Britto, existe outro hilário, do qual participaram os então deputados Onix Lorenzoni e João Augusto Nardes, hoje ministro do Tribunal de Contas da União. Nardes, vetado, procurou Renato Ribeiro para um acerto. Depois de muita conversa, ele consentiu em levantar o veto, mas avisou: "Vai ser aos pouquinhos, ganhando uma linha aqui, mais tarde um parágrafo e depois o texto todo". Animado, Onyx também quis a vantagem, mas levou um tapa nos dedos: "Você é muito jovem e terá que aguardar".


Enfim, após tamanha tormenta, a Empresa Jornalística Caldas Júnior mudou de mãos. Antônio Britto Filho voltou a ter acesso ao prédio onde praticamente iniciou sua carreira jornalística. Foi entrevistado pelo comunicador João Garcia no programa Guaíba Revista, na série dedicada aos ex-governadores. Assim referiu-se ao retorno à antiga casa:


"Puxa, quando cheguei aqui, fui olhado como aquele japonês que viveu anos sozinho na ilha e tinham esquecido dele depois de terminada a Segunda Guerra Mundial".


Na apresentação ao novo diretor, Jerônimo Ferreira, resumiu o significado do jornalismo ético de volta à empresa: "Vocês não compraram meios de comunicação, compraram uma instituição do Rio Grande".


Não sou sutil como Antônio Britto. Prefiro o estilo de Ulysses Guimarães. Tenho ódio e nojo quando a artimanha e a falcatrua impedem que gerações se desenvolvam e a humanidade avance. Quanto tempo perdido, meu Deus.


Consola ver esses tipos bizarros fora da mais tradicional rede de comunicação do Estado. Um dia vão virar pó. E caixão não tem gaveta.

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