As manhãs de sábado chegam sempre de bicicleta

Por Sérgio Capparelli As manhãs de sábado chegam sempre de bicicleta. E então saio pedalando. Mas Beijing tem muita pressa. Bairros inteiros viram condomínios …

Por Sérgio Capparelli

As manhãs de sábado chegam sempre de bicicleta . E então saio pedalando. Mas Beijing tem muita pressa . Bairros inteiros viram condomínios de edifícios de uma hora para outra . Mudam os costumes e os preços . E também as pistas especiais de ciclistas . Veja se consegue me acompanhar.


Pego a bicicleta na área de serviço e desço com ela até o térreo . Dona Mifan está colocando a gaiola do mainá no terraço . Ele , ave falante , cumprimenta , dizendo nin hao, com seu jeito sóbrio , olhos escuros e expressão séria . Em vez de responder-lhe, cumprimento Dona Mifan. Nin hao. Olho os pés de magnólia floridos no meio do pátio . Três deles lilases, um branco . Me lembro de que tenho de bater algumas fotos e dou um impulso na bicicleta . Levo o esquerdo ao pedal , projeto levemente o corpo por sobre o selim e saio a pedalar.


Na Jiang Hua Nan Lu bailam painas de primavera . Milhares delas nesse dia de vento . Vento , não , ventania : a poeira forma pequenos redemoinhos. Parte do vem das construções . A prefeitura está instalando novas tubulações de esgoto dos dois lados da rua e vão retirar os fios elétricos aéreos . Um tapume estende-se até a Jianguomen.


Beijing está assim . Cheia de guindastes . Metade dos guindastes do mundo está aqui . Os edifícios erguem-se da noite para o dia . Não para acompanhar o ritmo . Muita gente , muita máquina e muito trabalho . Não sei se os números são confiáveis, mas os beijinenses dividem o espaço a ser construído em pequenas porções de uns 15 centímetros quadrados cada , deslocando de 350 a 400 trabalhadores e de 50 a 60 guindastes para cada uma dessas porções . Até parece que estou inventando. Estou, mas é quase isso .


Assim, rápidos . Um operário prepara o cimento , o outro o aço , e o terceiro está na fila , com o vidro que vai ser posto na janela . Um termina, outro retoma. Duas horas depois estão prontos cinco andares . Mas não param , porque começou outro turno . Os anúncios de "aluga-se" estão nos jornais . Os primeiros moradores começam a ocupar o edifício e, numa reunião de condomínio , decidem a primeira reforma, o primeiro casamento , o primeiro filho e o primeiro enterro.


Enquanto isso , guindastes quase tocam o céu . Como técnica de marketing , põem e dispõem nuvens para flutuar no pedaço , exercem controle familiar rigoroso , abrem o mercado para o capital estrangeiro , investem na construção de navios , reparam o vazamento de poluentes químicos no rio de Harbim e fecham as rachaduras dos diques do Yangtze.


Anoiteceu nesse meio tempo.


Não reconheço minha rua nem meus vizinhos . Então me dou conta de que meu passeio de bicicleta na manhã de sábado durou anos . Pergunto à síndica se conhece um estrangeiro que morava no segundo andar da Yong An Li, apartamento 504, edifício 9, ela me olha com curiosidade e pergunta , qual edifício ? Insisto e ela diz que indago sobre acontecimentos de muito tempo atrás e ela tem memória fraca.


Um senhor de idade , de barbas brancas, que passeia devagar no pátio , apóia-se na bengala , dá uma meia volta e informa que havia, sim , no início do século , um estrangeiro nos antigos apartamentos da Yong An Li, mas que ele saiu um dia de bicicleta e nunca mais voltou.


Fico ali , apoiado em minha bicicleta durante algum tempo . Dois homens e três mulheres estão jogando "cuju", um jogo parecido com o atual futebol , mas que existia na China há mais de 2.500 anos . As regras do jogo , com observações sobre os times , goleiras, e supervisionados por um juiz , chegou até os dias de hoje nas páginas do livro "25 Regras do Cuju", escrito durante a Dinastia Han do Oeste (206 a.C-a.C 24).


Esses jogadores - os de agora , na minha frente -, fazem embaixadas , dão toques com o tornozelo e recebem aplausos dos que assistem das sacadas.


As luzes de neon piscam desatinadas no KMT Pátio dos Ventos . E acho muito estranho estar , a essa hora , empurrando uma bicicleta em uma Beijing desconhecida . E então me assusto, com a possibilidade de ter sido eu que mudei muito depressa nesse outono da vida .

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