As poções do Coronel Patrício

Por J.A.Moraes de Oliveira Seu nome era Patrício Vieira de Moraes, mas todos na família o chamavam de Coronel Patrício. Apenas os netos tinham …

Por J.A.Moraes de Oliveira

Seu nome era Patrício Vieira de Moraes, mas todos na família o chamavam de Coronel Patrício. Apenas os netos tinham o privilégio de chamá-lo por Vovô Picurra. Ele tinha um título de coronel de milícia de uma das antigas revoluções que varreram os campos do Rio Grande, que eu ouvira dizer ter sido a de 1893.


Mas o título de que ele realmente se orgulhava era o de doutor em medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro. O diploma, que nunca usara, estava esquecido entre os antigos guardados em um baú em seu quarto, ainda com a fita vermelha do dia da formatura. As escaramuças da revolução e as intermináveis disputas de terras junto à Lagoa dos Patos o haviam impedido de praticar a profissão. Mas ele mantivera o gosto pela medicina e ainda relia seus antigos livros de faculdade, guardados junto com o diploma da fita vermelha.


No armário de comidas da cozinha, Vovô Picurra guardava uma caixa de madeira com pequenos frascos de poções homeopáticas, meticulosamente arrumados por ordem alfabética. Lembro dos rótulos em latim, que ele lia em voz baixa: Nux Vomica, Belladonna, Calendulla, Chamomila. O meu preferido era o Aconitum Ferox, nunca usado, mas cujo nome me sugeria uma poção mágica das estórias de feitiçaria.


Lembro-me de passar horas debruçado à mesa da cozinha, observando-o dosar cuidadosamente algumas gotas para atender às mulheres e crianças dos agregados da fazenda que o procuravam com os mais estranhos males e dores. Quase sempre eram doenças comuns, que não justificavam uma longa viagem até Camaquã ou Tapes, mas que eram sempre tratadas pelas poções de meu avô. Ele não cobrava por sua homeopatia, exigindo apenas que trouxessem um frasco transparente e imaculadamente limpo. Seus pacientes eram fiéis e sempre voltavam para uma nova visita, com modestos presentes - um vidro de mel silvestre, um lombo de leitão assado ou uma braçada de flores do campo. Meu avô se enternecia com aqueles presentes e repetia baixinho: "Não precisava se incomodar, minha filha, não precisava?".


Quando ficou mais velho e cansado, impossibilitado de fazer o que mais gostava -  cavalgar e cuidar do gado, ele gastava quase todo o seu tempo atendendo os pacientes, cada vez mais numerosos. Agora já eram os filhos e sobrinhos, enviados pelos pais e mães curados pelas poções da caixinha de madeira.


Tempos depois, foi preciso renovar os frascos das poções mais utilizadas, que começavam a ficar vazios. As pessoas da família que viajavam a Porto Alegre recebiam agora um encargo especial: trazer as poções listadas em papel almaço, em tinta azul cobalto e caligrafia impecável. Mas com o tempo, as viagens dos tios até a Capital não eram suficientes para repor os frascos.


Quando voltamos para as férias do ano seguinte, os olhos de meu avô já tinham alguma dificuldade em ler as letras miúdas dos rótulos dos frascos.


Fui então convocado para ajudá-lo a localizar os vidrinhos da caixa de madeira. Um dia, enquanto o ajudava a encontrar uma poção que não estava lá, notei o olhar tristonho de minha mãe - ela parecia preocupada com a saúde de meu avô, que já estava com 90 anos. Naquela noite, quando fui ter com ela, me disse que a avó Ana Augusta, preocupada com a saúde do marido, discretamente dispensava os pacientes cujos males não eram graves.


Mas a conspiração das mulheres não funcionou por muito tempo. Ao notar a falta de pessoas a sua espera no corredor de entrada, despachou um dos peões às casas dos agregados e vizinhos, para ter notícias de seus pacientes.


E enquanto o peão não voltava, permanecia com seu olhar fixado na porteira da fazenda, esperando notícias dos doentes que não mais o procuravam.


E então passou a enviar novas dosagens de homeopatia àqueles que julgava merecerem mais cuidados.


Naquele ano, quando regressamos para Porto Alegre, senti minha mãe cada vez mais preocupada com a saúde de meu avô. Quando perguntei o que estava acontecendo, ela abraçou-nos demoradamente a mim e a minha irmã, dizendo que talvez não encontrássemos meu avô vivo no próximo verão.


Mas o Coronel Patrício enganou a todos, pois viveu mais três anos, continuando a medicar seus pacientes. E, sem ninguém saber, quando os vidrinhos ficaram vazios, ele substituía seu conteúdo com água destilada.


E para o espanto de todos, continuava curando as pessoas.

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