Bin Laden e Zilda Arns

Por Eliziário Goulart Rocha Um aldeão instalado nas estepes siberianas acorda no meio da noite, olha para o lado, vê que a mulher ainda …

Por Eliziário Goulart Rocha
Um aldeão instalado nas estepes siberianas acorda no meio da noite, olha para o lado, vê que a mulher ainda dorme mas não consegue esperar. Assustada, ela quer saber qual a urgência a retirá-la do refúgio de uma vida miserável proporcionado pelos sonhos. O homem, num misto de sonolência e efeito da vodka barata, seu próprio refúgio, acaba de ter uma visão. Seu papel no mundo, decreta, é ajudar os outros a combater a fome e a falta de esperança naquele inferno gelado. Como, indaga ela, se eles próprios só contam com uma precária cabana, um machado que serve de ganha-pão, uma bacia de latão, duas panelas de barro cozido, meia-dúzia de batatas, um colchonete e dois cobertores incapazes de llhes evitar o entorpecimento dos membros nas noites mais frias. Mas um visionário não conhece dificuldades. Seus braços doloridos erguerão o machado mais vezes, a coluna dela trincará um pouco mais na lavoura improvável e, em pouco tempo, conseguirão aliviar o sofrimento de seus irmãos de infortúnio. O exemplo se espalha pela aldeia. O esforço de todos leva a uma nova vida, de amor ao próximo e solidariedade, na qual alguma penúria persiste, é verdade, mas a esperança voltou a estar presente.
A milhares de quilômetros dali, outro aldeão acorda sobressaltado. Acorda a mulher e afirma ter tido uma visão. Ele precisa ajudar ao próximo. Para isso, se reunirá com alguns companheiros de jornada no campo para formar um grupo terrorista. Bombas caseiras, paus e pedras serão suas armas. Em pouco tempo, todos largam a colheita para fabricar artefatos de guerra e aceitam a morte como parte da estratégia. A fome não diminui, até aumenta, mas o exemplos se espalha. Logo, muitas crianças morrem de fome enquanto a frágil lavoura definha e armas vão sendo forjadas. O esforço de todos leva a uma nova vida, de ódio e violência, na qual a penúria aumentou e a esperança morreu.
O primeiro fato dificilmente alcançaria as manchetes ocidentais. O segundo, teria presença garantida nas primeiras páginas. "Cachorro morde homem" é o normal, não dá notícia, ao contrário de "Homem morde cachorro", aí sim, é um episódio digno do interesse da imprensa, é o que garante a antiga máxima jornalística. Também não adianta bancar o Joãozinho do Passo Certo. A imprensa sensacionalista nunca morre porque o público lhe garante a sobrevivência. Que pelo menos o questionamento desta realidade nunca nos abandone.
Outro dia, tive a leitura interrompida pelas vozes de meninos que brincavam ao redor da piscina do condomínio em frente à minha casa. "Eu sou Bin Laden", dizia um. "E ali é Nova York", completou o outro, que em seguida imitou o ruído de um avião. Como, à exceção de um punhado de fanáticos ou demagogos, todos concordamos que se trata de um bandido e de um ato contra a humanidade, é chocante ver crianças brincando com isso. Havia adultos em volta, mas nenhum me pareceu se importar com algo que não deveria ser visto apenas como brincadeirinha inocente. Bem, muitos pais ainda não vêem qualquer problema em dar aos filhos brinquedos como revólveres, metralhadoras, robôs exterminadores e similares.
A mídia tem uma parcela de responsabilidade nisso. Se o tema terrorismo é inescapável, talvez não fosse necessário exibir à exaustão a imagem de Osama bin Laden destilando seu ódio em horário nobre. Tampouco é fundamental mostrar tantas vezes as imagens das torres gêmeas sob ataque. Minha filha de três anos fecha os olhos e esboça um choro a cada replay da tragédia. Ideologias são dispensáveis diante de imagens como aquela. Minha filha sabe o bastante para não querer ver. Sabe que se trata de uma coisa ruim, feita por titios maus. Só malucos vocacionais duvidariam disso.
Apesar de cachorros mordendo homens não renderem manchetes, o espaço para as boas ações poderia ser ampliado. O rosto de Zilda Arns, cujo magnífico trabalho à frente da Pastoral da Criança já salvou milhares de vidas e lhe rendeu uma indicação ao Nobel, aparece poucas vezes na TV, ao contrário do terrorista saudita, proprietário de cadeira cativa na mídia. Talvez seja possível encontrar o meio termo. Um pouco mais de Zilda Arns e um pouco menos de Bin Laden não faria mal a ninguém.
Dedicado a Olyr Zavaschi
( [email protected])

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