Café Pacífico

Por Sérgio Capparelli No Café Pacifico, em frente ao porto, me perguntava por que chove toda vez chego a Hong Kong. Imediatamente me dei …

Por Sérgio Capparelli
No Café Pacifico, em frente ao porto, me perguntava por que chove toda vez chego a Hong Kong. Imediatamente me dei conta do quanto a frase é capciosa. E delirante. Ela pressupõe que o autor se julga tão importante ao ponto que sua simples presença crie fenômenos meteorológicos. Talvez fosse mais correto dizer: chego a Hong Kong e o dia está chuvoso. Mais simples e menos presunçoso. Mesmo que, neste caso, essa cidade observe presunçosamente quem chega e quem parte do alto do Monte Vitória.

Chego, portanto, e chove. E continua chovendo sobre a baía de Hong Kong, aqui na minha frente, no saguão do Café Pacífico. E a chuva bate nas fachadas de vidro do Banco da China, nas barcas ancoradas no porto, prontas para partir para Macau, e Shenzhen, e chove também sobre os trilhos futuristas que cortam a cidade até o aeroporto. Ora, futuristas são os trilhos, o próprio trem ou o conjunto veloz que partindo do centro da cidade corta a baía até chegar ao aeroporto? Ao me dar conta da incongruência, não encontro resposta, a não ser que a velhice - ou o início dela - me enche de perguntas e de preocupações bobas.
II

Passo a página do The Standard e descubro que se discute agora um salário mínimo para o trabalhador de Hong Kong, com objeções empresariais (salário mínimo interfere na liberdade empresarial) e dos que defendem um capitalismo com rosto social (necessidade de proteger os trabalhadores mais vulneráveis). A proposta é de US$ 5,00 por hora, o que daria US$2.000 por mês ou R$ 3.400,00.

Alguns defendem que as empregadas domésticas recebam também este salário mínimo. Atualmente, elas ganham R$ 1.000,00 e a mudança multiplicaria por três esse valor, o que incomoda a classe média. Para resolver esse incômodo - há 260 mil mulheres das Filipinas e da Indonésia em Hong Kong -, o governo estuda a importação de faxineiras da China. De preferência com mais de 40 anos e nunca por mais de seis anos, para que não sejam tentadas a ficar, trazendo famílias e onerando a sociedade.

Como se isso não bastasse, o jornal South China Morning Post noticia que 17,9% ou um em cada seis habitantes vivem abaixo da linha de pobreza. As estatísticas do General Household Service confirmam que esse pobres ganham menos de HK$3.300,00 por mês, ou seja, BR$1000,00. O jornalista não apontou um fato curioso: as empregadas domésticas importadas de outros países ganham um salário bem nessa linha fatídica, trabalhando mais de 12 horas por dia, o que não incomoda ninguém.
III

Retiro então os olhos do jornal, bebo mais um pouco de café e descubro que a chuva está mais forte. E me dou conta de que se venho ou não venho a Hong Kong, tanto faz, pois ora chove, ora faz sol. O sol não se importa com a chuva, a chuva não se importa com o sol. Nem a luz com a escuridão e vice versa. Ou o calor com o frio. Sou em quem se importa, nesse dia em que as nuvens acordaram baixas, formando um teto escuro, provocando uma sensação de que chovia, bem antes de avistar os pingos.

Pensei então nesses últimos dias turbulentos - para mim, claro, pois os dias para os dias não são turbulentos ou tranquilos - com a mudança para São Paulo, a volta inesperada a Porto Alegre para tratar de problemas de saúde, a volta a São Paulo e arrumação do apartamento para que ele fosse meu - para o apartamento, tanto fez como tanto faz ser de um ou de outro - e de novo no avião, dessa vez para explorar outro apartamento, esse perto de Veneza. Tomar posse, como dizia.

Na verdade, a maior parte do tempo no subúrbio de Pordenone - uma cidade de 38 mil habitantes na província de Friuli-Venezzia-Giulia - foi percorrer a burocracia atrás de um comprovante atestando que meu endereço era agora na Pont de le Cassie, 5. Consegui, depois de muitas andanças. Falta agora o codice fiscal - o CPF italiano - a carteira de identidade e a carteira de saúde. Aliás, boa parte do meu esforço foi para conseguir essa carteira de saúde do SUS italiano, porque a doença não está preocupada se tenho ou não tenho carteira de identidade ou de saúde, pois com carteira ou sem carteira ela se vê na obrigação de fazer a sua parte. E faz. Quer dizer, nem obrigada é, apenas segue seu curso e eu dentro nele, navegando em um barco frágil, que é o corpo humano.
 
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