Cappuccino em Belluno

Por Sérgio Capparelli De vez em quando pego o carro e saio por aí. Não pelas grandes vias. Pelas pequenas. Vem assim, de repente. …

Por Sérgio Capparelli

De vez em quando pego o carro e saio por . Não pelas grandes vias . Pelas pequenas . Vem assim , de repente . Pego o mapa , fecho os olhos e bato o dedo . Dessa vez caiu Belluno, a 70 quilômetros aqui de Podenone, onde estou, uma cidade perto de Veneza. Belluno, então . Como está o tempo ? Parece que vai chover . Cappuccino com chuva em Beluno, portanto .


Na verdade , os primeiros 20 quilômetros sigo pela auto-estrada , até Conegliano, essa cidade famosa por ser o berço do Prosecco e pelos seus famosos cursos de enologia. Mas depois a estrada estreita e corta cidadezinhas e vilas , às vezes margeando rio e lagos . Um deles - olha embaixo - ao lado da estrada San Floriano, é pintado de um verde azulado. Tinta grossa , pode-se perceber  na crista das marolas . Nunca vi igual . Vontade de sair do carro , descer pelo barranco e erguer a margem do lago ou a ponta do trapiche , para ver o que tem por baixo , se tela ou cartolina . Aposto tela , mais apropriada para esse tipo de paisagem .


Sigo com essa imagem por muitos e muitos quilômetros , passando por Fedalto Basso, onde paro, para ter certeza de que  o lago  é mesmo pintado , por Borgo Menegon, onde me arrependo de não ter descido a ravina , até chegar a Fadalto, deixando a província de Treviso e entrando na de Beluno.  Paro o carro e peço um cappuccino . Vejo que a atendente joga canela na espuma do leite . Tanto melhor . Não gosto de chocolate , nessa "bevanda composta da caffè espresso e latte montato a schiuma".


Tento passar os olhos sobre o Gazzeta dello Sport mas não consigo . Em vez de letras , apenas o pequeno lago incrustado nas montanhas , em um jornal incorpóreo - tem no mapa , mas sem nome - circundado por estradas de nomes esquisitos , como  San Floriano, Via Fadalto Alto e Via Fadalto Basso. Deixo o café , arrependido de não ter pedido também um brioche ou um croissant, talvez preocupado com a irrealidade que pode exibir uma paisagem imaginada.


sossego mais adiante , ja na província de Belluno, ao circundar o Lago Santa Croce e perceber que esse , sim , não é pintado nem de cartolina , com suas comunas de Santa Croce, Farra d"Alpago, até tomar a esquerda em Cadole e chegar a Belluno, agora no frio e com a chuva tamborilando, tendo à frente - do pára-brisa -  a imponência dos Dolomitas.


Chove agora mais forte me fazendo errar a entrada de Belluno, essa cidade com um Duomo do século 16, o Palazzo dei Rettori, de 1491, onde moravam os governantes venezianos e a Piazza dei Martiri, com seus palácios renascentistas . É aqui que estaciono, na frente de um supermercado , ficando ainda um bom tempo ouvindo os pingos . Depois abro o guarda-chuva pouco depois me abrigo sob as arcadas , até encontrar um café simpático , onde   passo boa parte da tarde . E dessa vez , sim , peço brioche , porque a moça diz que é brioche , mas , para mim , pain au chocolat, e enquanto como , observo os rostos em volta , a essa hora do dia .


Não , não quero museus . Quero apenas essa chuva caindo calmamente sobre a praça , como se fosse uma chuva antiga , que se renova de quando em quando , nessa paisagem que os olhos compõem lentamente . Numa paisagem quase abstrata , tenho certeza . E quando a chuva diminui, bisbilhoto mais um pouco os arredores , leio um cartaz sobre uma apresentação musical, não , não posso, tenho de voltar . Dessa vez , sim , mesmo com chuva , descerei a ravina , apenas para me certificar da irrealidade do lago , pois tenho toda a volta para reconstruir a paisagem .


* Sérgio Capparelli é jornalista e escritor, colaborador de Coletiva.net.

Imagem

Comentários