Chão sujo de sangue

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins* Dois disparos de um revólver calibre 38, que não atingiram os PMs, em frente ao Banco Itaú e à …

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins*
Dois disparos de um revólver calibre 38, que não atingiram os PMs, em frente ao Banco Itaú e à Galeria Di Primo Beck, onde fervilha o coração de Porto Alegre. Em plena sexta-feira, meio da tarde, final de mês, trabalhador com dinheiro no bolso, velhinhos jogando conversa fora na Praça da Alfândega, prostitutas com seus vestidos surrados e o odor de perfume barato e camelôs recolhendo rápido as suas bancas. Cheiro de tumulto na Praça. No entorno, gritaria e histeria. Uma mulher do grupo de assaltantes servindo como escudo. Isolamento do local. Pânico em todos os olhos dos populares. Sangue escorrendo pelo chão.
O genial Marcos Faerman, repórter policial famoso pela familiaridade que transmitia ao escrever as suas matérias, talvez começasse a relatar nessa linha o bangue-bangue que fincou, definitivamente, Porto Alegre, no mapa das cidades mais violentas do Brasil. Se estivesse no local, certamente pela sua competência, descreveria em detalhes a quantos centímetros do chão estouraram os tiros revidados pelos PMs. Como fez no livro "Com as mãos sujas de sangue", em que publicou textos seus originalmente estampados no Jornal da Tarde e que mostram como o noticiário policial pode ser envolvente, mesmo manchado de tragédia.
Marcão, falecido em 1999, contaria que uma das mulheres, 25 anos, atingida nos pés e nas nádegas, ao passar rotineiramente pela Rua dos Andradas, vestia calça jeans da marca tal e trazia no pacote esparramado pelo chão - entre seu corpo aguardando socorro e a sacola suja de sangue - produtos recém comprados nas Lojas Americanas. Podia ser até que descrevesse a cor de seus olhos, sua expressão de incredulidade. Assim, como fez na página 35 do livro citado acima: "A cabeça voltada para o chão, um olho meio aberto, a barriga aparecendo entre a camisa azul e a calça bege amarrotada: morto".
Cena de cinema, como captou o repórter do Correio do Povo (CP) deslocado para cobrir o bangue-bangue. "Por ironia, a cena típica de filmes de ação ocorreu próximo aos cinemas Guarany e Imperial, com desfecho de um assaltante baleado e duas pedestres feridas por balas perdidas", relatou a página policial do CP na edição de sábado (30/abril). Ao tentar passar pelo local, com uma certa quantia de dinheiro escondida estrategicamente no corpo para quitar uma dívida, antes de dirigir-me ao jornal, pensei: "O Haiti já é aqui", porque sempre relaciono os acontecimentos com letras de músicas.
Mais tarde, na redação do jornal, as imagens começaram a perturbar o meu pensamento e eu precisava de concentração para fechar as matérias do dia. A sexta-feira já não tinha começado da maneira mais agradável (mentiras sinceras não me interessam mais), minha última economia esvaindo-se no pagamento de uma dívida e eu não conseguia deixar de pensar que aquele filme era reprise, com outros atores, outros instrumentos de violência, outro lugar. Uma espécie de "Vale a pena ver de novo". Esses acontecimentos totalmente inesperados são manchetes quase todo o dia nos jornais do Rio de Janeiro, capital em que a violência é a dona da cidade maravilha.
Independente da forma escolhida para descrever a notícia, não se pode negar que Porto Alegre não apresenta nenhuma segurança para a população fazer um trajeto básico: ir de sua residência para o serviço, ou vice-versa; ou da escola ou da universidade para qualquer destino. Todos caminham pelas ruas com medo. Dentro do ônibus, parece que alguém sempre vai chegar e arrancar a nossa bolsa, com os documentos e tudo o mais. Nas ruas, qualquer fisionomia nos assusta e chegamos a pensar que a nossa própria sombra está nos perseguindo. Na frente da nossas casas, se temos o privilégio de ainda ter um carro, somos obrigados várias vezes a dar voltas e voltas para despistar um provável assaltante.
Não é a cidade que conheci, que me fascinou, que sempre pensei o solo ideal para deixar minha filha crescer e, quem sabe, cuidar dos netos. Não é a Porto Alegre que sempre me abraçou com seu Guaíba indescritível, que sempre me envolveu, que me atraiu pela qualidade de vida. Não é a capital que eu sempre me emocionei em defender como uma das melhores para se viver. Até quando teremos que suportar tanta inércia do Poder Público na busca de solução imediata para reverter a violência e a criminalidade de Porto Alegre? Quantos filmes de ação ainda serão reprisados em velhos cinemas abandonados? Quantas balas perdidas iremos contar pelo chão sujo de sangue? Quanto sangue derramado dentro dos nossos corações?
* Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela PUCRS, trabalhou no Jornal do Comércio e Zero Hora, e atualmente está atuando em assessoria de comunicação social e no Correio do Povo.
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