Colchas de Bicos

Por J.A.Moraes de Oliveira “Não sei dizer, já faz muito tempo." O peão de olhos de índio passou a mão calosa na barba por …

Por J.A.Moraes de Oliveira


"Não sei dizer, já faz muito tempo."


O peão de olhos de índio passou a mão calosa na barba por fazer, olhando de lado enquanto tentava entender meu interesse por aquelas ruínas abandonadas. 


Todos se mudaram para a cidade; virou esta tapera que o senhor está vendo."


Entrei pelo vão onde um dia era uma porta de madeira azul. Caminhei por restos de paredes, procurando localizar onde eu e meus primos brincávamos em distantes verões.


Procurava alguma coisa para preencher vãos de memória, mas desisti. Nada havia naqueles destroços que me levasse de volta àqueles dias de risos alegres e ingênuas travessuras - apenas pedaços de tijolos, telhas quebradas e um solitário caco de louça branca com filete azul.


Teria eu tomado café naquela xícara?  


O velho peão havia se distanciado. Parei junto de um amontoado de velhos troncos de madeira. Me lembrei que ali ficava o antigo potreiro dos cavalos do tio César.


***


Como em um "flashback" de filme mudo, avistei um menino de oito anos que usava calças curtas. Ele estava empoleirado na alta cerca, admirando os cavalos chucros sendo laçados pelos peões.


O menino brincava com uma pequena faca, riscando na madeira da porteira. As imagens ficaram mais nítidas: era uma faca de caça, com palavras em árabe na lâmina e o emblema de um cantão suiço no cabo.


***


Alisei a madeira com as mãos, até encontrar as duas pequenas letras gravadas no palanque de anjico. Fiquei por um longo tempo olhando para as iniciais de meu nome - quantos anos haviam se passado e quantos mais ainda passariam?


Procurei o velho índio, mas ele havia desaparecido entre as árvores.


  ***


  A tosse seca voltou forte, como um som de mau agouro. O tio César já não se animava a levantar da cama, coberta com a colcha de retalhos coloridos. 


Aquela colcha de bicos fora costurada especialmente para ele por minha mãe e pela tia América, durante as longas tardes de domingos, na frente da casa grande da fazenda. Eu gostava de olhar o grupo de mulheres sentadas em roda, costurando as grandes colchas de bicos. Elas falavam baixo e riam alto. E não tomavam medidas, como se suas mãos soubessem o tamanho de seus homens.


E agora, lá estava a mesma colcha de bicos, iluminada pelo sol, cobrindo o vulto de meu tio. Era um contraste irreal, quase trágico, com seu perfil pálido e imóvel.


 * **


Quem estava deitado naquela cama não era o mesmo tio César cheio de vida, de olhos brilhantes e negros bigodes, de poucos anos atrás. E que soltava gargalhadas de pura alegria enquanto laçava e derrubava touros rebeldes.


Ao voltar das lides do campo, se divertia com as mulheres dos peões sentadas nos troncos, debulhando sementes de girassol. Batia a cinza do cigarro de palha, com a longa unha do dedo mínimo e falava alto para todos ouvirem:


"Sementes de girassol não servem para nada. Nem passarinho come. Isto é para ocupar quem tem muito tempo e nada para fazer."


E entrava pela porta azul, deixando atrás de si o cheiro acre do cigarro de palha.


***


O menino de oito anos subiu na cerca do potreiro e retirou a pequena faca de caça da bainha de couro. Com a ponta afiada, experimentou a madeira da porteira. Estava quase chegando a hora de montar o cavalo tordilho e dar uma volta sozinho pela várzea - uma proeza que precisava contar para o avô quando voltasse à casa da fazenda. Terminou de riscar o moirão no mesmo momento em que ouviu o chamado do tio César e o relinchar inquieto do tordilho.


***


R etomei vagarosamente o caminho da saída da fazenda, sem entender porque fizera aquela jornada em procura de tempos passados.


Quando alcancei a estrada, as ruínas, a porteira e as memórias foram encobertas por um grande cartaz de propaganda. 


Continuei dirigindo pela estrada, sem saber aonde ir.

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