Começar de novo

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins* Tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou morreu. A gente estancou de repente ou foi …

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins*
Tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou morreu. A gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu. Que momento precioso de inspiração que teve o meu idolatrado Chico Buarque ao escrever esses versos em Roda Viva. Simplesmente porque todos já tivemos aquele dia terrível em que nada dá certo, desde que se coloca o pé direito no chão. É o famoso dia em que não se deveria ter saído de casa. Coisas simples que já começam a irritar quando se acorda, como não encontrar o chinelo, o único banheiro da casa já está ocupado, o leite do café derrama (a empregada resolveu se atrasar), pede um dinheirinho que recebeu ontem, mas já tá sem nenhum e a gente desce as escadas correndo antes que mais alguma coisa aconteça antes de chegar ao serviço.
Como não somos facilmente influenciados pelo pessimismo ou realismo, a chuva intensa que caía lá fora não nos remete ao cenário de que o trânsito na capital deve estar complicado. E, como temos uma reunião depois do expediente com alguma agência ou empresário, cedemos à tentação e vamos de carro, que embora exija o pagamento de garagem no centro, facilita na hora da saída, finalzinho de tarde. Bomfim é um bairro lindo, amo de paixão, mas ter que entrar no Túnel da Conceição, entre 8h30min e 9h, num dia de chuva, não é dos atrativos mais turísticos do local.
Pequeno congestionamento, algumas buzinas estridentes. Mas o sexo feminino é light, o perfume que se nos enfeita ainda está marcando, batom em ótimo estado, enfim, estamos com cara de início de dia. Coloco um CD da moda, tipo Jquest ou Maria Rita e prometo que não vou me deixar influenciar por tanto mau humor e carros engavetados. Exceto quando um caminhão enorme, completamente inconformado com a fila em que meu carro está, resolve mudar de faixa, sem calcular exatamente se o espaço para isso é suficiente. Escuto um som estranho que não se parece nem de longe com nenhuma música do CD da Maria Rita.
Inexplicavelmente, o barulho vai aumentando, até que eu percebo que meu carro, pequeninho, bonitinho, lustradinho, novinho, ainda sendo pago em suaves prestações, está sendo literalmente arrastado pelo caminhão. Ao perceber que meu carro não estava mais andando impulsionado por mim e sim por um caminhão enorme, coloco o pé no freio e faço sinal de luz, buzino, grito, quase me jogo (expondo-me a riscos pelo movimento do túnel) a fim de que o caminhão encoste e seu condutor desça para tomarmos as precauções necessárias.
Para meu completo espanto, ele foge, costura, no Túnel congestionado e, quando, finalmente, consigo encostar ao lado dele e pedir que tratemos do assunto civilizadamente, ele diz algo obsceno e foge. Minha vontade feminina, eu confesso, é chorar. Mas meu instinto racional acende uma luzinha e manda chamar a EPTC e registrar a ocorrência, anotar placa e coisa e tal. Só cedi à tentação de chorar de raiva mesmo, quando cheguei ao serviço e não consegui segurar as lágrimas.
Não entrarei em detalhes da confusão do seguro e estas coisas. Porque realmente o dia estava fadado a não ser dos melhores. Derramo café na calça preta social com a qual pretendia comparecer na reunião no final do expediente. Tenho um release pra entregar até às 11h e preciso da aprovação do meu assessorado que não chega. Telefono para ele, mas está na maldita caixa postal (quem inventou isso?). Terei que esperar e atrasar o cronograma.
Tudo bem. Ao meio-dia, vou ao salão, relaxar um pouco, fazer uma massagem, usar os serviços da pedicure que me atende há no mínimo seis anos. Conversa vai, conversa vem, aqueles assuntos que os homens sempre querem saber e que motivam tantos comentários nos salões de beleza, a pedicure de anos e anos faz uma pequena bobagem e tira um pedaço que não devia de alguma unha do meu pé. Começo a passar mal. A suar frio. Fico branca. O pessoal me traz chá quente, éter, me deitam numa cama, até o mal estar passar.
E o mal estar passa. Mas sabem a que horas? Lá pelas 22h, quando estou em casa, de banho tomado, lexotan também, pijama de ursinho, depois de passar uns sete cremes para o rejuvenescimento, a filha ao lado fazendo carinho e eu vendo um programa babaca qualquer sem nem prestar atenção. Não quero mais comentar esse dia. Ele não existiu. Virei a página. Decido dormir. Acompanho a minha pequena até a sua cama e faço aquele ritual de mãe que todas as mães conhecem. E vou me deitar com a certeza de que "amanhã há de ser outro dia".
* Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela PUCRS, trabalhou no Jornal do Comércio, Zero Hora e atualmente está em assessoria de comunicação social.
[email protected]

Comentários