Como já dizia o poeta

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins* Eu francamente já não quero nem saber, de quem não vai porque tem medo de sofrer. Ai, de quem …

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins*
Eu francamente já não quero nem saber, de quem não vai porque tem medo de sofrer. Ai, de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão. Como já dizia o poetinha Vinícius de Moraes, nada é pior do que, antecipando-se ao sofrimento, deixar de fazer algo. Não existe perdão do lado de baixo do Equador para os covardes. Em qualquer atitude que se pretenda tomar na vida, sempre vai existir o risco de se fazer errado, sofrer demais, arrancar os cabelos e outras histerias típicas de histórias que acabam mal. Talvez porque nem tivessem que ter começado. Como saber?
Só mesmo expondo o coração. Depois, na contabilidade final, se o resultado for muito negativo, o coração está rasgado, dilacerado, esmagado no chão, mas a gente sabe que pecou pela tentativa e não pela omissão. Comecei esse artigo assim, despretensioso, após carregar, uns dias na memória, uma discussão protagonizada por um casal desconhecido dentro de uma lotação enquanto tentava, inutilmente, não escutar a briga e "cochilar" no caminho entre um emprego e outro.
As vozes do casal se instalaram na minha mente no momento em que ele diz: "Eu devia imaginar que iria sofrer, me envolvendo contigo, alguém cheia de qualidades" (parece que ter qualidades não é bom para o currículo nos dias atuais). Silêncio constrangedor. Todos no lotação se olham. Ele, perturbado, alterou a voz. Foi quando ela, furiosa (o.k., todas mulheres ficam mais irritadas na hora da briga), pediu para descer. Da porta do lotação, antes de sair, ela virou-se e berrou: "Sabe de uma coisa? Hoje de manhã, ao acordar, percebi que havia deixado de te amar".
Devo confessar. A briga do casal me perturbou. E fiquei com a música do poetinha até juntar o quebra-cabeça. Ele, antevendo que poderia sofrer na relação, reclamou que deveria ter evitado o sofrimento. E ela marcou a hora em que deixou de amar. Quanta maluquice permeia os relacionamentos hoje em dia. Nada tem mistério. Ele poderia sofrer em intensidade maior em outro relacionamento, mas como saber? E ela anotou na sua inseparável agenda: hoje, dia tal, exatamente às ?horas da manhã, deixei de amar fulano.
Meu coração, que já estava esmigalhado na semana, por outros motivos, tornou-se mais indefeso. E fiquei imaginando quantas cenas teriam outros personagens na minha vida se eu não tivesse ficado com medo de sofrer? E o final poderia ser diferente? Estaria hoje eu bem instalada em uma fazenda no interior do Estado, ordenhando vacas, fazendo geléias e com uma penca de filhos? Talvez. E daí? Impossível apagar o tempo já vivido. Bem mais cômodo imaginar que poderia ser tudo um conto de fadas, com direito a sapatinho de cristal e um lindo príncipe.
As lembranças acompanham até o fim o latin lover. É melhor não se arrepender de arriscar. Se o moço do lotação, assim como eu, tivesse optado por outro caminho, quantas experiências não teria perdido? Passada esta etapa, pensei: Meu Deus, em que momento exato eu deixei de amar? Porque no início é tudo muito glamoroso. De repente, com o desgaste, detalhes tão pequenos de nós dois começam a incomodar. Como não percebi antes que ele tinha tal cacoete? E a tampa da privada porque nunca abaixa? Que falta de educação falar com a boca cheia e que desconsideração deixar a toalha molhada em cima da cama.
De repente, encontrei tantas coisas que me irritavam, que não tinham nada a ver com o meu mundo, mas sempre existiram. Eu não as enxergava. Talvez eu seja a última romântica, no litoral desse oceano Atlântico. Assim como o poetinha, ai de quem não rasga o coração, esse jamais terá perdão. Ainda prefiro arriscar e depois ouvir alguma música de dor de cotovelo, aquelas que o Nito (do bar na Lucas de Oliveira) diz que é de cortar os pulsos. Faz parte do meu show. Mas, mudaria uma frase nesse show: "Sabe de uma coisa? Hoje de manhã, ao acordar, percebi que havia começado a me amar mais".
* Márcia Fernanda Peçonha Martins é jornalista, formada pela PUCRS, trabalhou no Jornal do Comércio e Zero Hora, e atualmente atua em assessoria de comunicação social e no Correio do Povo.

Comentários