Cores de Almodóvar

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins* Final da década de 80, início dos anos 90 nos jornais de Porto Alegre, com a derrocada do sonho …

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins*
Final da década de 80, início dos anos 90 nos jornais de Porto Alegre, com a derrocada do sonho acabado do Diário do Sul; alguns projetos que não deram certo; o Correio do Povo começando a se consolidar em novo formato e a Zero Hora aproveitando para gravar a sua hegemonia no Estado. O momento era de novas máquinas, novas diagramações ousadas e, acreditem, feita na própria máquina de computador, as matérias escritas pelos repórteres passavam por muito "move bloco" e era uma facilidade escrever e editar, falando em termos de tecnologia. Trocar e-mails (mensagens instantâneas) dentro da própria redação, era o must do momento e aí nasceram, morreram, brotaram namoros duplos e outros ficaram na lembrança.
Dias desses, contaminada por um certo saudosismo, fiquei rememorando esses e-mails e suas declarações maravilhosas. No fundo, bem lá no fundo, não dá prá negar. Os e-mails, mesmo para os comprometidos, eram alimentos da alma, do ego e até de uma boa matéria, conforme o conteúdo. Sem citar nomes para não entregar totalmente os (as) culpados (as), era muito estimulante voltar de alguma entrevista de ping-pong (estilo usado na última página do Caderno de Economia de Zero Hora na época), com 30 minutos de entrevista com algum ministro da Fazenda falando de um novo plano mirabolante, com dead line estourando, e ao abrir o computador encontrar palavras ternas de carinho e entusiasmo.
Depois de ler tal "missiva", a repórter degravava rapidamente a entrevista não sem entre uma frase ou outra responder para o responsável pelo seu entusiasmo. Em menos de 45 minutos, tudo pronto, editado no computador, vamos ver as melhores fotos e daí o autor do e-mail saía junto e ficava aquele certo momento implícito: "Vamos tocar no assunto ou não"? O mais comum era a repórter, que poderia ser comprometida (assim como o autor do e-mail), voltar para a sua casa sem tocar no assunto, e, tipo adolescente, ficar torcendo para chegar o outro dia e ganhar novo e-mail.
Evidente, ninguém pensava que isso era amor, paixão cruel desesperada e jamais o autor do e-mail mandou mil rosas roubadas. Mas tinha um cheiro de adolescer, de pecado, de coisa escondida, de ficar esperando a luzinha mágica que anunciava a chegada do novo e-mail e a repórter iria correndo abrir. E lá vinha: "Meméia, como você tá tesuda hoje. Não gosto nem de pensar" (bobinhos vocês, não, eu troquei o apelido). Mãos ágeis devolviam o e-mail: "Não fala assim, sou comprometida e essa barba mal feita hoje está me enlouquecendo".
Os dias passavam como em qualquer redação de jornal. As pautas distribuídas, os repórteres nas ruas, fotógrafos (me permitam, como o José Doval e o Fernando Gomes) atrás dos melhores ângulos, editores executivos estudando bem as páginas. Nada deixava de acontecer. No outro dia, quando o jornal estava na banca ou na casa do assinante, duvido que alguém de fora do ramo imaginasse que rolava, na feitura daquele produto final, um certo namorinho, testemunhado apenas entre destinatário e remetente.
Andava, essa semana, pela rua cantarolando: "Eu ando pelo mundo prestando atenção em coisas que eu nem sei o nome, cores de Almodóvar, cores de Fria Kahlo, cores, passeio pelo escuro", gravada pela Adriana Calcanhoto no CD Senhas, e não pude tirar de meus pensamento aquele homem alto, com sorriso hiper maroto, sexy e cobiçado que mandava os tais e-mails para a tal repórter. E fiquei "viajando": se tivesse respondido algum, o que teria acontecido? Talvez seja melhor esperar a edição de amanhã do jornal e nem permitir tais pensamentos. Porque "minha alegria, meu cansaço, meu amor, cadê você, eu acordei, não tem ninguém ao lado".
* Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, trabalhou em Zero Hora no período citado. Por isso, trocou apelidos e evitou maiores detalhes. Hoje, atua em assessoria de comunicação
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