De Grappa e Polentas

Por J.A.Moraes de Oliveira A Clara faz polentas, massas e molhos caseiros com amor e com comovente dedicação. Sempre por perto, o Renato retribui …

Por J.A.Moraes de Oliveira

A Clara faz polentas, massas e molhos caseiros com amor e com comovente dedicação. Sempre por perto, o Renato retribui as nossas exclamações de prazer, com mais uma generosa rodada de grappa.


E os comensais daquela cantina abrigada em um velho galpão e escondida em um vale entre as montanhas, hesitam entre repetir a polenta mole com molho de calabresa e manjericão ou retornar à massa acompanhada de um espesso molho de galinha caipira.


Não há garçãos - vai-se até o fogão e serve-se das panelas fumegantes, usando prosaicas colheres de pau. É o momento das dúvidas - polenta mole ou polenta dura, massa com molho de funghi ou à bolonhesa?


Clara e Renato não são ambiciosos - se recusam a aumentar a pequena cantina e abrem suas portas apenas quatro vezes por semana. Eles exercitam prazerosamente a arte da hospitalidade - seus clientes são recebidos à moda antiga e tratados como amigos de longa data. E servem a simples e autêntica mesa das mamas do tempo dos colonos, usando produtos frescos e produzidos no sítio ali ao lado. Mesmo a excelente grappa que servem é feita artesanalmente por um descendente de colonos, que se nega teimosamente a usar as fórmulas industriais de destilação.


A precária estradinha de terra, que leva ao fundo do vale, parece não intimidar os clientes da cantina. Mas eles não gostam de repassar a estranhos o endereço de onde se come a melhor polenta da região.


Eles pressentem que, naquele local, se tenta preservar a verdadeira cozinha colonial, em vias de extinção. Os habitués ainda não são muitos, mas o suficiente para lotar as poucas mesas, o que recomenda uma reserva antecipada para os fins-de-semana mais movimentados.



Para quem já teve a ventura de conhecer as osterias do interior da Toscana ou do Veneto, uma visita a Clara e Renato pode significar um ritorno al paese sem euros e passaporte. O cenário é quase o mesmo - montanhas, sotaque vêneto e até ovelhas e gansos convocados para colorir a paisagem.


Enquanto o musgo nas cercas de pedra mostra a passagem dos anos, as construções de enegrecidas tábuas de pinho sugerem a rusticidade da vida dos colonos que por ali andaram, antes da chegada do asfalto, das luminárias de sódio e das prateleiras refrigeradas dos supermercados.


Diz-se que a origem da polenta data dos anos 1700, quando o milho foi introduzido na Itália. Os vênetos e friulanos lembram que a polenta foi a resposta do Norte à pasta do Sul e que, igualmente, era uma comida dos camponeses e dos disobbligati, os diaristas que trabalhavam nas colheitas.


Quando se pergunta à Clara de onde vieram suas polentas e molhos, ela responde que são receitas sem dono, que fazem parte da tradição oral dos descendentes dos imigrantes. E conta que a polenta dura com queijo reforçava o café da manhã nas madrugadas dos colonos, enquanto a polenta mole acompanhava as carnes no farto pranzo do meio-dia. Repetindo os hábitos de seus avós camponeses do Norte da Itália, os imigrantes combinavam a polenta com os produtos que encontravam à mão - lingüiça picante caseira, coelho assado, molhos de carne ou de perdiz.



Quanto aos molhos, as pesquisas pouco revelam. Os de lingüiça, queijo e al sugo seriam os originais praticados pelos colonos. Já os molhos de funghi, galinha caipira, cordeiro com ervas ou carne de panela teriam sido incorporados nos anos mais recentes, pois a democrática polenta sempre aceita novos e saborosos acompanhamentos.


Como as receitas de pasta caseira, as de polenta vieram na bagagem dos imigrantes, mas, curiosamente, nem todas as modalidades conhecidas na Itália do século XIX estão presentes na culinária ítalo-brasileira do Sul.


Por exemplo, é mais fácil encontrar um bom ravioli ou um capelli d"angeli em São Paulo do que no interior do Rio Grande do Sul. Mas, por outro lado, é preciso uma boa pesquisa nas cantinas paulistanas para encontrar uma polenta mole digna deste nome.


E certas especialidades regionais italianas estão ausentes das mesas do Sul do Brasil. Por muitos anos, quando queríamos saborear um autêntico Casonsei alla Bergamasca, era preciso ir até a rua Augusta, em São Paulo, e reservar uma mesa no lendário "Ca" D"Oro".


Consultando suas preciosas anotações, Clara e Renato mostram as inumeráveis variedades de polenta que encontraram em suas pesquisas na Itália e na Serra Gaúcha. Para cada região do Centro e do Norte italiano existem muitas versões locais de polenta. Na região de Friuli-Veneza-Giulia, ela é servida com molhos de pescado; já a Alla Lombarda, usa o queijo Fontina derretido, enquanto no Tirol, se usa manteiga de anchovas. Sem falar na versão Alla Sarda, com queijo de cabra e a pouco conhecida Taragna, ou Polenta Nera com queijo Taleggio.


Infelizmente, nestes dias de massas congeladas e molhos enlatados, está ficando cada vez mais difícil encontrar quem esteja disposto a dedicar tempo e paciência para resgatar estas receitas quase esquecidas.


Quando começávamos a discutir a sobrevivência da polenta, Clara nos convida a testar duas antigas receitas recuperadas de suas anotações: polenta com lascas de bacalhau e polenta com ragu ao perfume de manjericão.


Como em um passe de magia, recuperamos nossas quase perdidas esperanças - a verdadeira polenta camponesa ainda sobrevive. Sentamos à mesa para mais uma dose de grappa e mergulhamos no prazer da simplicidade da comida dos oriundi.


Observando-se as pessoas ao redor do fogão de Clara, é possível perceber uma certa ironia gastronômica - os mesmos pratos rústicos que saciavam os deserdados do Norte e do Sul na Itália do Settecento, agora são ávidamente disputados pelos gourmets e gourmands de nossa modernidade.

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