De Volta ao Teatro Colón

Por J.A.Moraes de Oliveira Tito Schippa era um nome mágico de minha infância. Lembro-me claramente de meu pai, procurando no dial colorido do Telefunken …

Por J.A.Moraes de Oliveira

Tito Schippa era um nome mágico de minha infância. Lembro-me claramente de meu pai, procurando no dial colorido do Telefunken de 16 válvulas, sua emissora favorita, a Rádio Belgrano. Quando o zumbido das válvulas diminuía e o "olho mágico" fechava suas pálpebras, ele me chamava para junto do rádio: "Preste atenção, filho - isto é Buenos Aires!". E logo a voz empostada do locutor anunciava "Directamente del majestoso Teatro Colón, de Buenos Aires, República Argentina, tenenos el placer de presentar el mas grande cantante lirico del mundo, Tito Schippa". E as vozes e o encantamento tomavam conta de todos, hipnotizados pelas luzes do Telefunken, sobre a mesinha auxiliar da sala de jantar, onde ficava guardada a preciosa coleção de revistas "ParaTi" de minha mãe.


Outras vozes brotariam naquele Telefunken da minha infância: Enrico Caruso, Benamiglio Gigli, Renata Tebaldi. Cada cantor anunciado por aquele locutor (falava-se "speaker" naqueles tempos) era sempre "el mas grande del mundo". E sem entender bem porque, eu compartilhava daquele encanto que fazia brilhar os olhos do pai, que passava os dias seguintes cantarolando sem palavras as árias de Puccini e Bizet.


Perguntava-me a mim mesmo que poder mágico teriam aquelas palavras e acordes de "Madame Butterfly", "La Bohéme" e  da "Carmem", que acendiam a felicidade nas pessoas. Mais tarde, saberia pela mãe que, quando solteiro, o pai viajara a Buenos Aires para assistir um recital de Renata Tebaldi e gastara o dinheiro da viagem ocupando por noites seguidas um camarote no Teatro Colón.


Já adulto, durante uma viagem de trabalho, o prédio do Teatro Colón inesperadamente surgiu em meu caminho. Desci do táxi, atravessei a imponente portaria de cristal e carvalho e, sem saber o que buscava, me deixei vaguear pelos salões e corredores.


O grande teatro estava vazio a não ser por alguns vultos indistintos que se ocupavam aqui e ali em manutenção e reparos.  Nos bastidores amontoavam-se velhos cenários empoeirados e, nos camarins desertos, garrafas vazias e lâmpadas queimadas sobre espelhos manchados. Subi aos camarotes, frisados com antigos dourados, de onde se podia avistar o majestoso palco, onde vozes imortais de grandes tenores e divas magnetizaram multidões nas noites de grande gala. No grande "foyer", procurei em vão pelas placas de bronze com os nomes de Tito Schippa, Benamiglio Gigli e Renata Tebaldi. Os velhos funcionários não estavam dispostos a falar e tudo que consegui foram gestos cansados. Um deles disse apenas: "Son cosas del pasado, Señor, cosas muertas que se fueram."


Na entrada majestosa nas deserta, uma vitrina de cristal exibia publicações com a história do teatro. Parei, imaginando os segredos que aqueles livros poderiam contar. Mas não havia ninguém por perto para vendê-los. Experimentei uma forte tristeza por ter invocado tantas memórias adormecidas. Eu devia saber que o passado nunca é aquilo que recordamos.


Respirei fundo e saí, em busca dos compromissos que me esperavam. Envolvido pelos ruídos do trânsito da avenida, deixei para trás o velho teatro e caminhei ao longo dos plátanos iluminados pelo sol de outono.

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