Depravados e comunistas

Por Paulo Tiaraju Eram os experimentalistas anos 70 e o casal ouvira falar das tais práticas do amor livre, o melhor dos dois mundos, …

Por Paulo Tiaraju

Eram os experimentalistas anos 70 e o casal ouvira falar das tais práticas do amor livre, o melhor dos dois mundos, o conforto do casamento associado com sexo novo, o corpo inédito de outra pessoa. Tudo às claras, sem precisar mentir. A palavra cumplicidade entrou para o vocabulário deles e conversavam  noite adentro, bebericando vinho. Como seria a experiência? Não, definitivamente não haveria lugar para ciúmes, era somente sexo. Não haveria carinho com a parceira ou o parceiro sexual, porque isso seria falta de respeito, quebra de confiança. E beijo, só o estritamente necessário, tecnicamente falando. Ernani dava as regras do jogo. E depois, seria tudo em alto nível, com muito charme. Lígia era enfática quanto ao uso de drogas ilícitas, imagina, ela, uma professora  formada no Instituto de Educação, jamais poria aquela porcaria de maconha na boca. Como iria encarar os alunos? Sexo grupal? Bem, teria que pensar, precisava amadurecer a idéia. E quanto aos casais? Quem eram eles? Na casa de quem? Um casal ela conhecia, o Beto e a Celinha, jogavam pôquer todos os sábados com eles! "É tudo gente boa" - respondeu Ernani. "A nível de confiança, são casais classe média, gente intelectulizada, entende? Imagina, você acha que eu faria uma coisa destas com gente bagaceira?" A simples conversa deixou o casal brutalmente excitado. Foram para cama e as paredes testemunharam o estremecimento, o descontrole, as safadezas imaginadas, os gritos abafados. Após a tempestadeErnani desabou no sono dos machos inocentes. Mas Lígia foi assaltada por uma vigília responsável.


Teria que ser numa noite que as crianças fossem dormir com os avós.  "Seja o que Deus quiser, o que não mata engorda", pensou. Mesmo assim continuava cismando.  "E se ele gostar muito? E seu eu quiser mais? Me conheço? dou um boi para não entrar numa briga, depois dou uma boiada para não sair dela. Ai dele se demorar muito com uma vagabunda, eu corto, juro que eu capo ele. Não sei, não, acho que isso vai dar rolo? Meu santo pai !"


Lígia adormeceu e teve um pesadelo. Sonhou com o Ernani passando em revista todas as mulheres da festa, tudo em fast motion, câmera acelerada. Ele pulava de uma  para outra,  mas quando chegou  a sua vez o companheiro dela, digamos, desflacionou. Prestou a atenção no homem e reconheceu a figura de Wood Allen que gesticulava e falava muito, dando longas explicações sobre a inutilidade do coito propriamente dito, sem um ritual afetivo capaz de justificá-lo, e o quanto  as fixações primitivas e  as neuroses seriam responsáveis pela combustão de uma sexualidade efêmera, ainda que incendiária. Disse ainda que sentia muito ter fracassado, pois os olhos dela faziam lembrar os de sua tia Judith. E o Ernani lá, saltando de uma mulher para outra, peladão. Lígia acordou sobressaltada e sentou na cama, suada e ofegante.


Noite de estréia. Para quebrar o gelo o dono da casa servia as mulheres com generosas doses de whiski. Lígia não gostou dele, achou de mau gosto um enorme pênis de pano costurado  no avental que vestia. "Alto nível?", pensou. Virou-se para o Ernani e perguntou: "Quem é este idiota?  "O Lélio, o dono da casa, qual o problema?" "Aquele troço pendurado ali, não gostei daquilo." O Lélio sacudia o corpo diante dos casais nervosos e constrangidos, fazia a tromba de pano jogar de um lado para o outro. DesconfiadaLígia olhou para o ambiente. Não via incensos queimando, nem um pôster do ChGuevara, nem um quadro psicodélico, nada. "Aquilo ali não era swing moderno coisa nenhuma", pensou. Viu o Beto e a Celinha sentados mais ao fundo, ambos pálidos, como se  estivesseindo para o cadafalso.


O tempo passava, as pessoas bebiam a sorvos largos, o tom de voz subindo, mas nada indicava algo mais saliente, ou uma certa permissividade. Súbito, uma voz masculina se fez ouvir com mais ênfase:  


"Absolutamente, inflação não se acaba com decreto, isto é coisa do Golbery." Vinha de um grupo de homens que conversavanimados. As mulheres entravam e saiam da cozinha trazendo salgadinhos e sanduíches. Depois rolou  Beatles, e Jane Joplins, e Violeta Parra, e Milton Nascimento e Chico: Pai, afasta de mim este Cálice, afasta de mim este cálice, de vinho tinto de sangue. Algumas pessoas choravam emocionadas. Viva Ulysses Guimarães!, alguém gritou.Vivaaaaaaa! Viva Tancredo! Vivaaaa! Entrou Rock and Roll pesado no som. Os casais, para ser mais preciso, maridos e mulheres, começaram a dançar, frenéticos. A única figura ligeiramente destoante do grupo era o solitário Lélio, dançando com o grande pênis de pano jogado de um lado para o outro, mas, a estas alturas, todos riam aliviados.

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