Devoção a um Santo Desconhecido

Por J. A. Moraes de Oliveira Eu havia chegado a Lisboa, cansado de aeroportos, da comida de microondas e das reuniões que pareciam nunca …

Por J. A. Moraes de Oliveira

Eu havia chegado a Lisboa, cansado de aeroportos, da comida de microondas e das reuniões que pareciam nunca ter fim.


Quando entrei no quarto de hotel, fui até a janela olhar o Tejo correr para o mar. Enfim, eu estava em um lugar civilizado - um convento carmelita do século XVI.


Na verdade, o convento agora é uma charmosa hospedaria e se chama York House. A construção, com mais de 400 anos, fora cuidadosamente restaurada, as celas dos monges transformadas em aconchegantes quartos e a capela em sala de almoço, com pesados bancos e mesas monacais. Ao longo dos corredores, paredes cobertas por azulejaria azul-e-branco das antigas oficinas do Porto.


O endereço da York House é fácil de guardar: número 32 da rua das Janelas Verdes, no bairro da Lapa. Saí do hotel e passei diante de um dos grandes museus de Lisboa, o Museu Nacional de Arte Antiga. Mas naquela brilhante tarde de primavera não estava muito inclinado  a visitar o acervo de pinturas que retratam feitos, glórias e tragédias  de reis, santos e heróis de Portugal.


Eu ansiava mesmo era por um reencontro com a cozinha lusitana.


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O taxi me deixa na Praça da Figueira, faço uma curta caminhada, cruzando com a estátua eqüestre do rei D. João I e atravesso a bela Praça D.Pedro IV (na verdade, D.Pedro I do Brasil). Pouco depois, estou no Rocio.


Minha jornada contemplativa continua quando entro na Rua das Portas de Santo Antão. Passo pelo local onde havia um grande portão de ferro do século XV, que ligava a Baixa ao Rocio. À minha frente se alinham algumas veneráveis casas de pasto que, há gerações, servem a verdadeira comida portuguesa.


No número 58, me detenho por um momento na Casa do Alentejo, com seu pátio e fonte mourisca do século XIX. No número 37, a Lagosta Real, com sua vitrina enfeitada por lagostas e mexilhões frescos, me faz hesitar. Mas sigo em frente até chegar ao número 23.


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O Gambrinus continua exatamente como da primeira vez que aqui almocei, levado pela mão hospitaleira e generosa do bom amigo Ruy Diniz. Lá estão os coloridos vitrais homenageando o Rei Gambrinus, a coleção de peças de porcelana e as mesmas madeiras, com a pátina do tempo fazendo seu trabalho.


Os aromas da cozinha chegam até a mesa. Deixo de lado a decoração e abro o cardápio, já conhecido de outras andanças. Como se estivesse sob o efeito de um feitiço, o cansaço da viagem desaparece e começo a fazer as pazes com a vida.


Vejo que há novos problemas a enfrentar - o maitre Basílio informa que o prato do dia é Cabrito Assado a Souto-Mor, mas a descrição da Parilhada de Mariscos me deixa indeciso. Compartilho minhas penas com Basílio, que usa o ar condescendente de quem já aplacou a gula de muita gente:


"- Fique com o Pato com Arroz à Portuguesa, que sempre deixa as pessoas felizes".


Aceito o conselho e, para suavizar a espera de 40 minutos, peço uma entrada de Alheiras de Mirandela e Rins grelhados com Jerez.


Abro a carta de vinhos e as dúvidas recomeçam até que o sommelier aparece para sugerir uma Garrafeira do Reguengos do Alentejo.


A garrafa chega e deixo escapar um suspiro ao ver que a safra coincide com o ano de nascimento de um de meus filhos. O vinho se apresenta com uma cor-de-topázio, mas aguardo a chegada dos rins grelhados.


Como sempre, retornar à mesa em Lisboa, pede o apaziguamento do nosso espírito.


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Quando chega o dourado toucinho do céu como sobremesa, me lembro do sentimento do personagem de Eça de Queiroz, após almoçar em seu restaurante predileto no Bairro Alto:


"E sentiu adelgaçar-se enfim, aquele negrume que desde a véspera lhe pesava na alma?"

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