Dossiê, imprensa e Judiciário

Por Carlos Alberto Di Franco* De algum tempo para cá, o uso de grampos como material jornalístico virou ferramenta de trabalho. A reportagem foi …

Por Carlos Alberto Di Franco*
De algum tempo para cá, o uso de grampos como material jornalístico virou ferramenta de trabalho. A reportagem foi sendo substituída por dossiê. Os injustiçados já não olham para os tribunais, mas para os jornais. Os inimigos evitam o confronto direto, pois conhecem a eficácia de uma falsidade bem plantada. Viu-se a imprensa transformada num perigoso instrumento de vinganças, mas, ao mesmo tempo, numa instância prática de realização da justiça.
A publicação de grampos pode ser tudo isso: denúncia verdadeira ou chantagem vil. Impõe-se, conseqüentemente, um redobrado esforço na qualificação das matérias que chegam às redações. É preciso ter cuidado com a fonte que voluntariamente procura o repórter. Dossiês, mesmo quando carregados de indícios relevantes, são apenas pistas para uma adequada investigação. Não são (ou não deveriam ser) matéria para edição. Nada, nada mesmo, substitui o dever da apuração. O grampeamento continua sendo um delito. Independentemente das tentativas de minimizar a gravidade da sua prática, continuo achando que o melhor fim não justifica quaisquer meios.
Um perigo ronda o trabalho da imprensa: a síndrome da competição. O bom jornal é aquele que tem a coragem de esquecer a concorrência e optar pela informação de qualidade. É sempre melhor usar a cautela do que ter de recuar no dia seguinte. Feitas tais ressalvas e separado o joio do trigo, gostaria, caro leitor, de salientar a relevância das sucessivas denúncias contra a corrupção que têm batido à porta das redações. Fatos recentes evidenciam a importância da denúncia jornalística como instrumento de luta contra a impunidade. Alguém imagina, por exemplo, que o avanço nos processos contra o ex-prefeito Paulo Maluf, político que há anos desafia a Justiça e a sensibilidade ética dos brasileiros, teria sido possível sem a pressão de um autêntico jornalismo de denúncia? É óbvio que não.
O Brasil, graças também à varredura feita pela mídia, está passando por profunda mudança cultural. Esse processo, no entanto, tem provocado alguns conflitos institucionais. Sobressai, entre eles, um crescente desgaste no relacionamento entre o jornalismo e o Judiciário. Alguns, indignados com os excessos da mídia e o vedetismo de certos membros do Ministério Público, criticam o presumível poder de destruir dos meios de comunicação.
A informação é a base da sociedade democrática. Por isso, precisamos melhorar os controles éticos da notícia, combater as injustas manifestações de prejulgamento e a precipitação que pode desembocar em autênticos assassinatos morais. Mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar de criticar o formalismo paralisante do Judiciário, responsável maior pela desconfiança com que a sociedade encara a possibilidade da realização da justiça. Em nome do amplo direito de defesa, importante e indispensável, a efetivação da justiça pode acabar se transformando numa arma dos poderosos e numa sistemática frustração dos mais desprotegidos. Aplicam-se aos desvalidos os rigores da lei e se concedem aos criminosos do colarinho-branco as vantagens dos infinitos recursos que o Direito reserva aos que podem pagar uma boa defesa.
A crise do Judiciário tem empurrado a imprensa para uma função que não é sua. O cidadão, descrente da eficácia do caminho judicial, procura o repórter. Vivemos uma profunda distorção, uma superposição de papéis. A crise, no entanto, não se resolve com atitudes corporativas. É preciso discutir um novo conceito de espaço público que permita uma convivência civilizada entre o Poder Judiciário e o mundo da informação. Os meios de comunicação, independentemente de suas mazelas e equívocos, têm travado uma saudável discussão a respeito dos seus conflitos éticos. Não vejo, no entanto, o mesmo debate na área do Judiciário.
O formalismo jurídico, marcado pela pura e simples aplicação das leis, não tem conseguido enfrentar problemas que ultrapassam as balizas fixadas pelo positivismo que está por baixo de inúmeras decisões. Será que o Judiciário, refém de uma estrutura obsoleta e morosa, está em condições de responder ao desafio dos novos crimes ecológicos, da delinqüência infanto-juvenil, dos escândalos políticos, do financiamento ilegal de partidos, etc.? Penso que não. As mudanças no Judiciário não podem ser postergadas. Afinal, a primeira vítima é o prestígio da Justiça. Juízes imobilizados por uma desumana enxurrada de processos e tribunais paralisados pela indústria de recursos desgastam a imagem da instituição. Ou o Judiciário compreende tudo isso e se atualiza ou será atropelado. A dúvida não é se a reforma modernizadora será ou deixará de ser feita. Mas se será feita no âmbito do sistema democrático ou sob um regime autoritário. A Venezuela está aí e deveria servir de escarmento. O formalismo jurídico sem vida pode matar a democracia. O que se quer não é a implementação da justiça à margem da Constituição, e, sim, um Judiciário que saiba encontrar, na interpretação da norma constitucional, os caminhos corretos para a realização da justiça.
Nós, profissionais da imprensa, estamos tentando fazer a nossa parte. Esperemos que o Judiciário, sem dúvida constituído por inúmeros homens de bem, faça a sua. Só então, sem corporativismo e arrogância, romperemos o conflito que tem marcado as relações entre duas instituições básicas para o processo democrático: imprensa e Judiciário. É fundamental que os políticos saibam que a imprensa, numa rigorosa prestação de serviço, será a memória da cidadania. Mas, sobretudo, é essencial que o Judiciário, serenamente e sem engajamentos espúrios, esteja à altura da indignação social.
* Carlos Alberto Di Franco é professor de Ética da Comunicação e representante da Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra no Brasil, e diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia Ltda. O artigo foi originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 17/01/2005.
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