E o grito derrubou o presidente

Por Maria Alice Monteiro* Imagens mal cortadas, sem sincronia com um áudio distorcido. Âncoras que interrompem a locução para conversar com o produtor. Matérias …

Por Maria Alice Monteiro*
Imagens mal cortadas, sem sincronia com um áudio distorcido. Âncoras que interrompem a locução para conversar com o produtor. Matérias cortadas inesperadamente, feitas por repórteres desalinhados, que se perdem no meio do stand-up. Não, não estamos falando de uma desastrada aula de telejornalismo. Trata-se de uma cobertura esforçada mas atrapalhada, quase amadora, responsável por transmitir aos equatorianos uma notícia que há muito esperavam ouvir: o militar que subira ao poder em 2002 já não era mais presidente.
Quito parou para ver e ouvir a queda de Lucio Gutiérrez, coronel que entrará para a história equatoriana não só como um grande corrupto, mas como o político mais amador de todos os tempos. Ou como aquele que não acreditou que quitenho bom, é quitenho na rua, que empunha bandeira, não se rende à censura nem ao gás lacrimogêneo. E é capaz de derrubar presidente no grito. Assim, bravamente, impulsionadas pela avalanche de informações que surgiam a cada minuto, as emissoras de TV locais foram às ruas e, aos trancos e barrancos transmitiram sem parar, o dia todo, imagens de muito tumulto, incêndios, quebra-quebra e gente ferida. Quase deixando na poeira a CNN em espanhol, que só entendeu que a crise equatoriana era mais do que simples histeria latina quando foi declarado vago o cargo de Gutiérrez.
Tanto os quitenhos queriam novas notícias que na tarde da quarta-feira, 20, a TV Equavisa, canal 8, ignorou a grade de programação e transmitiu, ininterruptamente o caos na capital equatoriana. Novas informações jorravam a todo instante. E o âncora Alfonso Espinosa só interrompia a locução quando alguém o chamava: ele parava de ler o prompter, recebia a informação pelo ponto, batia um papinho com o produtor e improvisava a retransmissão da notícia. Cômico, se a situação no país não fosse tão séria.
No rádio, quitenhos puderam ir mais longe. Tiveram a chance de driblar a ditadura e soltar o verbo. Nas última semanas, a pequena rádio La Luna, mesmo sob intermitente censura, abriu o microfone para os manifestantes. Quando a repressão aumentava, tinha as linhas telefônicas cortadas, mas apelava para o celular mais próximo para não deixar de receber os apelos de quitenhos indignados. Promoveu marchas e panelaços contra Gutiérrez e, indiretamente, apoiou a decisão brasileira de dar asilo ao ex-presidente. Nos momentos mais tensos da negociação sobre o futuro do coronel, na sexta- feira à tarde, enquanto manifestantes lotavam a calçada da residência oficial brasileira e cada vez mais irritados insistiam em pedir pela permanência do ex-presidente no Equador, a La Luna convocava "los forajidos" - como se autodenominam os contrários a Gutiérrez - para protestar em frente ao escritório da OEA e à embaixada norte-americana.
A influência da La Luna, no entanto, não foi suficiente para segurar a ira dos militantes, que, com receio de que o ex-presidente fugisse, faziam qualquer coisa contra quem tentasse deixar o local. Valia tudo: de cascudo a pancada no pára-brisa. Cenas que a falta de agilidade impediu a TV local de registrar. Na madrugada do domingo, no entanto, a Ecuavisa aguardava de tocaia nos fundos da residência oficial. Não se sabe se estava ali por pura sorte ou pelo sopro de uma fonte bem informada. Mas registrou, sozinha, o momento em que Gutiérrez finalmente rumava ao asilo no Brasil.



*Maria Alice Monteiro é jornalista e reside em Quito, Equador.

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