Entre a Ramiro e a Felipe

Por J.A.Moraes de Oliveira* Para nós, que morávamos na Vasco da Gama, na fronteira entre a Avenida Independência e a Avenida Oswaldo Aranha, havia …

Por J.A.Moraes de Oliveira*
Para nós, que morávamos na Vasco da Gama, na fronteira entre a Avenida Independência e a Avenida Oswaldo Aranha, havia sempre a opção de escolher um de dois caminhos. Subindo a Ramiro, alcançava-se a parada de bondes da Praça Júlio de Castilhos. Ali, homens de terno e gravata e senhoras de chapéu esperavam o bonde Prado ou o Auxiliadora. Descendo a Felipe Camarão chegava-se até a parada de bondes diante do Hospital de Pronto Socorro. Havia sempre muita gente esperando os bondes que desciam de Petrópolis e os que vinham pela Venâncio Aires e do Menino Deus, estudantes do Instituto de Educação e das faculdades que ficavam alem da Sarmento Leite. Bem na esquina, ficava a Casa Gato de armarinhos, dos Feldmans, e do outro lado, o botequim do Joaquim, que anos depois seria conhecido como "Fedor", pelo aroma de seus banheiros junto ao balcão e às mesas de sinuca.
Subindo a Ramiro, era gostoso de ver os casarões da 24 de Outubro e Mostardeiro, sem falar nas mansões lá para o lado da Hidráulica, com seus jardins bem cuidados e Buicks e Oldsmobiles reluzentes pousados letárgicos em suas garagens. Descendo a Vasco em direção à Felipe passava-se pelos sobradinhos e pelas pequenas lojas das famílias judias. As minhas viagens mais freqüentes eram até o Armazém Vasco, na esquina de nossa rua com a Felipe Camarão, e até as duas padarias do bairro: a Zoratto, cuja fornada das 5 horas era a preferida de minha mãe, e a Três Estrelas, já quase do Bom Fim, que conhecida por sua grande variedade de biscoitos e pelos pães decorados com gergelim e sementes de papoula.
Eu tinha amigos e colegas de aula nos dois lados; logo ali, na Castro Alves, morava o Arno Dreher e seu irmão Norberto em um grande casarão de estilo normando. Certo dia, convenci o Norberto a me levar para dar uma volta no seu novo MG verde. Infelizmente, naquela manhã não havia nenhum de meus amigos da Felipe Camarão para testemunhar meus escassos minutos de glória.
Prazer mais duradouro eram os romances de Karl May, emprestados da biblioteca da família, que eu devorava vorazmente durante as férias escolares, roubando tempo dos estudos para o exame de segunda época.
No dia em que fui devolver o lido e relido "Winnetou", lamentei que a leitura tinha terminado. Com um sorriso maroto, o Arno me levou até a biblioteca da casa e exibiu a coleção completa de Karl May, mais de 20 volumes em português, além da coleção original em alemão, encadernada em couro vermelho. Daqueles grandes livros, eu me limitava a apreciar as gravuras em bico-de-pena, um luxo negado às brochuras em português. Foram muitas as viagens até aquela biblioteca, até que eu conhecesse quase de cor as aventuras de Winnetou e Old Surehand.
Muitos anos depois, já trabalhando como repórter no "Correio do Povo", passei pela Castro Alves com o meu primeiro carro, um Opel Kapitan.

Parei o carro, atordoado - o casarão normando sendo demolido e naqueles restos de paredes e na caliça depositada na rua estavam desaparecendo o passeio no MG verde e a biblioteca com os livros de Karl May. No caminho para casa, passei pelo Armazém Vasco e pela padaria Três Estrelas, procurando outros vestígios de meus fantasmas de infância.
Não encontrei nenhum.
* J.A.Moraes de Oliveira é jornalista e publicitário.
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