Esses moços, pobres moços…

Por Sérgio Capparelli Uma pesquisa com recém-formados de universidades chinesas me lembrou o Brasil. Eu estava na agência, onde trabalho em Beijing, quando recebi …

Por Sérgio Capparelli

Uma pesquisa com recém-formados de universidades chinesas me lembrou o Brasil. Eu estava na agência, onde trabalho em Beijing, quando recebi o resultado da pesquisa. O título dizia que um terço dos graduados chineses achava que a universidade, para eles, tinha sido perda de tempo e de dinheiro. Pensei nos estudantes brasileiros que quando se formam e vão em busca do primeiro emprego descobrem que ganharão uma quantia menor do que a que pagavam mensalmente às universidades onde estudavam.


Não, não se trata de retórica.


Veja, bem, se eu estudo numa universidade particular, pago R$ 1.000,00 por mês, e quando me formo, procuro emprego num escritório de advocacia, de arquitetura, numa agência de publicidade ou em um jornal e me oferecem R$ 700,00 por mês. Descubro o que eu já sabia: cada mês de trabalho significará R$ 300,00 a menos do que eu gastava mensalmente com os estudos.


Li a notícia devagar. Eu não tinha dormido muito bem. E quando não durmo bem, não sei se sou eu ou o mundo que fica descompensado. Para esclarecer quem tinha razão, eu ou o mundo, pus um punhado de Lu Cha (chá verde) no meu copo, junto com um cubo de açúcar, e peguei água quente de uma garrafa térmica azul, ao lado da impressora a laser. Ainda de pé, vi que os franceses da sala em frente ainda não tinham chegado, mas os russos, sim, já trabalhavam. Sentei-me novamente, me perguntando por que estava interessado no desemprego de chineses recém-formados.


A notícia falava que em 2001 tinham se formado 1,15 milhão de estudantes na China e que em 2006 esse número havia subido para 4,1 milhões. Em seguida, deixava subentendido certa incompatibilidade entre a explosão do número de universitários e o estreitamento do mercado de trabalho.


Eu me disse, "estreitamento"? Acho que esta não é uma boa palavra, pois o mercado de trabalho chinês continua se ampliando. No entanto, esse grande número de recé-formados parece provocar um rebaixamento geral de salários.


Antes do boom das universidades chinesas, por exemplo, os universitários formados deixavam a universidade e conseguiam logo um emprego, ganhando entre R$ 700,00 e R$ 1.000,00 por mês. Agora, diz a reportagem, eles se contentam com R$ 250,00 ou R$ 300,00, caso consigam emprego. Daí, a desilusão.


? 51,5% dos entrevistados consideram que nada aprenderam de prático na universidade;


? 39,2% afirmam que não conseguiram um emprego compatível com a formação superior;


? 34,7% consideram que o período passado na universidade significou perda de tempo e de dinheiro.


? 28% disseram que se tivessem mais uma oportunidade, escolheriam uma escola técnica e não uma universidade, porque os empregadores atuais preferem habilidades práticas e não conhecimentos teóricos.


Nesse momento, aparece Zhao, dentro da pesquisa,. Ele diz ter se formado em Ciências Agrárias e ter conseguido um emprego de guarda, ganhando R$ 250,00 por mês, o que representa, no Brasil, um salário de mais ou menos R$ 400,00. Acontece que Zhao não estava contente com esse emprego, que nada tinha a ver com seus estudos. Ele começou então a se preparar para o mestrado durante o dia e a trabalhar no McDonald durante à noite. "Eu não tenho escolha", diz Zhao.


Confirmo que certos acontecimentos ultrapassam minha compreensão. Convivi, por exemplo, com centenas de Zhaos sem perspectiva de trabalho decente depois de formados. Eu tinha uma resposta engatilhada para esse problema, culpando o lento desenvolvimento brasileiro, cuja economia ia de décadas perdidas a décadas perdidas. Nessa manhã, porém, bebendo meu Lu Cha e avistando, num só lance, 15 guindastes em movimento, me dei conta de que também em economias que crescem a mais de 10% ao ano, existem jovens sem esperança de trabalho.


Confesso que fui para casa um pouco acabrunhado. Zhao não me saía da cabeça. Milhares de Zhaos. De amanhã, de hoje, de ontem. Até porque Zhao significa também procurar. Por isso, a tarde passou muito lenta. Muito calor - a temperatura, nesse momento, é de 35 graus Celsius. Certo desconforto também por causa das cadeiras pouco ergonômicas. E a reduzida ergonomia do emprego jovem.


Chamei Lívia (minha filha) e perguntei, vamos de bicicleta até Wanfujin?


Wanfujin é a rua da Praia de Beijing. Wan significa imperial; Fu,poço e Jin, perto. Em outras palavras, convidei-a para irmos até perto do poço imperial, no cruzamento da avenida Chang"an, junto da Cidade Proibida.  Ok, ela disse.


Saímos pedalando e de vez em quando emparelhávamos as bicicletas para falar alguma coisa, mas normalmente seguíamos a uma pequena distância, para não perturbar o fluxo de centenas e centenas e centenas de duas rodas a caminho de algum lugar.


Lívia é dessas pessoas que se sentem sozinhas quando estão sozinhas. Há um mês e meio ela me telefonou de Porto Alegre e disse, pai, estou indo para Londres, procurar emprego num escritório de arquitetura, num restaurante ou em qualquer lugar, porque estou cansada:


1. De estar aqui sozinha;


2. De não saber o que fazer com esse meu curso;


3. De querer procurar alguma coisa melhor, nem que seja descansar um pouco até pôr minhas idéias no lugar.


Teve uma época em que eu também me sentia sozinho quando estava sozinho. Mas criei tantos fantasmas, alimentados a pão-de-ló, que agora vivo sempre povoado deles. Aliás, foi um que pediu minha voz emprestada e respondeu a ela pelo Skype: Ora, Lívia, antes de ir para Londres, vem a Pequim por uns dias porque estou com muitas saudades suas.


Ela veio há três semanas e seu primeiro presente foi uma bicicleta. Seu curso de arquitetura está lhe servindo às maravilhas para escrever de forma perfeita os caracteres Hangzi. E de vez em quando diz que está entusiasmada, porque Londres pode ser uma boa experiência.


Eu pedalo mais um pouco e paro diante da sinaleira. É fim de tarde e muita gente deixa agora o trabalho. Grande parte desses trabalhadores usa bicicleta, nessas faixas bem sinalizadas onde a entrada de carros não é permitida. Mas às vezes eles entram, esses doidos, tentando ganhar tempo. Principalmente os carrões pretos chapas-brancas que aqui são azuis, municipais, provinciais ou centrais. Buzinam de forma inconfundível e estão em todos os lugares, especialmente nos estacionamentos dos shoppings.


Livia aproxima-se na sua Gama-XL, que tem quatro marchas, a marcha muito cansada, cansada, pouco cansada e bem disposta, porque são marchas naturais feita de músculos de panturrilhas.


E como está pensando fazer? Vou ficar numa casa, tipo pensão. E procurar emprego no jormal, nas agências ou bater de porta em porta. E pego o que aparecer!


Bom, tu e teu irmão vão estar na mesma cidade. Tentem se apoiar um ao outro.


O irmão dela, Daniel, meu filho, agora está em Yellowknife , no norte do Canadá. Deve ir em setembro para a London School of Economics, para o mestrado.


A sinaleira abre e prosseguimos até Wanfujin.


Nesse momento, entrando pela Dongdan, me lembro que há mais de trinta anos fui para Londres trabalhar. Consegui emprego em um restaurante vegetariano de Hampstead. Eu não estava desempregado. No máximo, descontente com meu trabalho. Lavava pratos. Tanto tempo depois, a Lívia tenta seguir carreira em instituições gastronômicas inglesas.


Aí me lembro novamente da pesquisa que tinha lido pela manhã sobre os jovens chineses que se formam na universidade. Cerca de 44,7% deles acreditam que sem a universidade a busca de trabalho teria sido mais difícil.


Ela pergunta:


E tu, pai, até quando vais ficar aí?


Eu coço a cabeça. Há um fluxo enorme de carros, nas dez pistas da avenida. Leio o nome da rua numa placa. Chang"An. Chang significa longa, e An, paz.
Mais alguns meses, Lí
via. Talvez até junho do ano que vem. Depois vou ver se consigo um emprego na França ou no norte da Itália. Porque as pessoas recém-aposentadas da universidade têm dificuldades de conseguir emprego. Os empregadores hoje valorizam apenas as habilidades práticas.


Ela ri.


Mas você, pai, não precisa mais de trabalhar.


É a minha vez de rir.


Claro, Lívia. Mas agora, trabalhar tem de ser um prazer. Se não for prazer, melhor não trabalhar. São as vantagens do tempo e da idade. Mas tenho em vista um emprego na França. Pode ser que goste. Porque, se não gostar, que eles procurem alguém, com habilidades práticas.


Deixamos as bicicletas no estacionamento (R$ 0,30 cada uma) e seguimos um pouco tontos pela Wanfujin, com seu trânsito enorme de pessoas e de veículos, até o momento em que se torna uma ampla rua reservada aos pedestres. Estamos com sorte. Uns 200 metros da rua estão ocupados por esculturas. As mais diversas. As mais extraordinárias. As mais surpreendentes. E vamos devagar, observando como o sol do fim da tarde arranca reflexos na escultura de uma bailarina chinesa em bronze.

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