Estripando porcos

Por Mario de Almeida Registrei neste espaço que na noite de 8 de novembro, a convite da Feira do Livro, elementos do antigo Teatro …

Por Mario de Almeida
Registrei neste espaço que na noite de 8 de novembro, a convite da Feira do Livro, elementos do antigo Teatro de Equipe fariam a leitura pública de um ato, escrito por mim, como "descomemoração" do AI-5.
Naquela tarde, Zuenir Ventura, autor do livro cujas reedições também não terminam - "1968, o ano que não terminou" - fez uma palestra sobre aquele ato institucional e suas conseqüências. Não pude comparecer, pois ensaiava a referida leitura mas, como sou repórter, soube que Zuenir saciou a curiosidade de muita gente, principalmente jovens, sobre aqueles anos de terror, e deu uma aula sobre o assunto.
As duas décadas de terror, promovidas por um Estado assassino que, de acordo com o historiador Hélio Silva ("A vez e a voz dos vencidos"), estiveram entregues às mãos de psicopatas, foram debulhadas, com fatos, só fatos, pela leitura do Equipe. Conforme Hélio, esses psicopatas eram irmãos menores de Hitler, Mussolini, Stalin, Somoza e Pinochet.
Esses psicopatas transformaram os ditadores em reféns de atos assassinos, torturas, desaparecimentos e atrocidades de todas as espécies. Castello Branco, Arthur da Costa e Silva, Emilio Médici, Geisel e Fiqueiredo, quando não omissos, foram patronos do mais odioso capítulo de nossa história.
Dias antes de nossa leitura, foi divulgado um trecho do último livro de Elio Gaspari, onde o ditador Geisel, antes de empossado como tal, concordava que matar (assassinar) adversários era uma "barbaridade", mas uma barbaridade necesssária. Essa "necessidade", se muito difícil de se engolir quando em defesa da democracia, era, no caso, uma necessidade para preservar a ditadura.
Ninguém escapa do julgamento histórico: Castello, através do Ato Institucional nº 1, cassou direitos, prendeu gente, investiu-se como ditador e foi pusilânime em aceitar Costa e Silva como seu sucessor, faltando à palavra empenhada de promover eleições livres. Esse seu Artur, um bufão deslumbrado, assinou o AI-5, teve uma trombose e foi expelido do trono. Médici, passando-se por surdo e cego, foi o mudinho diante das torturas, assassinatos e do terror generalizado. Geisel, que responsabilizam pela "abertura", tolerou tudo, menos que sua autoridade fosse posta em cheque. E João Baptista Figueiredo, outro bufão, assumiu dizendo que prenderia e arrebentaria quem tentasse se opor ao processo de abertura. Deixou que prendessem e arrebentassem quem só queria a abertura e engoliu o episódio do Riocentro sem arrebentar ninguém. O protagonista, o então capitão Wilson, agente de uma ação frustrada por acidente, mas que mataria muitos espectadores de um show, hoje é coronel. Por sua vez, o então coronel Job Lorena, na TV, tentando explicar o episódio à Nação, como coisa de comunista, só não foi o palhaço maior desse periodo pois Figueiredo alegou prioridade - apareceu na TV, em traje de jogging, pedindo ao povo que o esquecesse (patético!). O tal Job ganhou o generalato como brinde.
No auditório Barbosa Lessa, meus amigos Cristina Zanini, Ivette Brandalise, Marlene Ruperti, Armando Ferreira Filho, Hugo Cassel, Milton Mattos, eu e a cooptada jovem atriz Valéria Lima, sem eufemismo, sem complacência e com a certeza da verdade, apenas com fatos, chamamos assassinos de assassinos e psicopatas de psicopatas.
Ficou claro que o recado - um alerta para que coisa semelhante jamais se repita - encontrou um público receptivo, aplaudindo de pé, por alguns minutos, o término do ato, ao som de Chico Buarque. E muita gente cantou conosco o "Apesar de você".
Foi muito bom estar vivo, ainda, para mudar o "amanhã vai ser outro dia" para "hoje já é o outro dia".
Os porcos foram estripados em público e enquanto urubus se saciavam com suas vísceras, ouvia-se o estribilho do poema "O Corvo", de Edgar Allan Poe, na tradução de Fernando Pessoa: "Nunca mais?"
* Mario de Almeida é jornalista, publicitário, dramaturgo, autor de "Antonio?s, caleidoscópio de um bar" (Ed. Record), "História do Comércio do Brasil - Iluminando a memória" (Confederação Nacional do Comércio) e co-autor, com Rafael Guimaraens, de "Trem de Volta - Teatro de Equipe" (Libretos)
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