Ética jornalística à chinesa

Por Sérgio Capparelli Nas entrevistas, aqui na China, o repórter contenta-se muitas vezes em se referir a uma pessoa de forma imprecisa. Por exemplo, …

Por Sérgio Capparelli

Nas entrevistas , aqui na China, o repórter contenta-se muitas vezes em se referir a uma pessoa de forma imprecisa . Por exemplo , um homem de sobrenome Wu disse isso ou um alto funcionário disse aquilo . Mas quando se trata de um gerente de banco , de um diretor de multinacional ou de uma autoridade , o nome e a qualificação profissional aparecem como em outros jornais de prestígio do resto do mundo . A verdade é que , aqui ,   com freqüência, a maior parte da população não conta em termos jornalísticos .


Da mesma forma , ao apurar uma notícia , os repórteres , por preguiça ou por cultura jornalística , não se preocupam em equilibrar a narrativa , trazendo perspectivas diversas. Uma reportagem, por exemplo , sobre a cobrança de energia elétrica nos dormitórios das universidades, entrevista um representante da empresa de eletricidade e o reitor , e tanto um como o outro anunciam a decisão tomada . Os   estudantes não aparecem e são eles que vão pagar a conta . E eles são 12 milhões , quase todos eles morando dentro do campus e pagando, até agora , uma quantia ainda razoável para comida e alojamento . Eles estão ausentes da reportagem. Por que o repórter não entrevistou os estudantes ? Ah, e precisa ? Sim , cara pálida , precisa !


Nos últimos tempos , porém , a abertura econômica tem repercutido também na mesmice de alguns jornais ou na mesmice de alguns noticiários de televisão . Obrigados a se comportarem pelas regras do mercado , muitos jornais começam a rever seus conceitos de jornalismo. Não pela sua inserção em um jogo de forças mais complexo mas também porque outras forças ocupam os terrenos baldios da opinião pública .


Uma empresa , por exemplo , descontente com uma cobertura jornalística pode pressionar o jornal , não interessa se com razão ou sem razão . Interessa, isso sim , que ela tem espaço e possibilidade de se manifestar , até mesmo por via judiciária .  os jornais , conscientes de seu poder e fragilidade , começam a descobrir conceitos como o de responsabilidade jornalística . Finalmente , as novas tecnologias criaram um fórum de discussões nacionais , especialmente entre os mais de 110 milhões de usuários de internet ou entre os 400 milhões de usuários de mensagens curtas pelos telefones celulares . Esse fórum virtual parece ter forças para transformar um pouco a China e as autoridades ligadas ao setor de rádio e televisão sabem disso.


Vamos citar três exemplos , noticiados em três dias diferentes .    


Jornais de hoje


Diversos jornais noticiaram que dois jornalistas econômicos tiveram seus bens colocados em indisponibilidade em um processo aberto contra eles pela Hongfugim Precision Industry Co, que faz equipamentos para a iPod em Shenzhen. Os dados de uma reportagem sobre condições de trabalho na empresa ( baixos salários e mais de 12 horas de trabalho por dia ) foram considerados improcedentes e a Hongfujim, do Foxconn Technology Group, pediu US$ 3,75 milhões de indenização aos dois jornalistas , o que corresponde a mais de 600 anos de trabalho contínuo , nas suas curtas carreiras . Apesar do juiz ter aceito indisponibilizar os bens dos jornalistas , o consultor legal da Rádio Nacional da China, Xu Xun, afirma que em um julgamento de 1993 a Suprema Corte da China afirmou que são as empresas jornalísticas  que devem ser acionadas e não os jornalistas   individualmente .


Jornais de ontem


O departamento de televisões comerciais da Administração Estatal de Cinema , Rádio e Televisão da China (AECRTC) decidiu ontem investigar diversas reclamações recebidas sobre um comercial exibido em canais via satélite das províncias de Shaanxi, Shanxi e de Hebei. No anúncio , homens de negócios contam vantagens sobre uma nova droga para aumentar a potência sexual que os transforma em garanhões irresistíveis na cama .


Jornais de anteontem


E anteontem , no terceiro caso , a jornalista do China Daily, Li Xing, contava sobre o jornal de Guanzhou, no sul da China, que sugeriu numa reportagem que as melancias produzidas na região tinham sido contaminadas com uma injeção de "hongyaoshui", que literalmente significa " água medicinal vermelha ", para apresentarem um aspecto mais saboroso e cores mais vivas . A notícia espalhou-se por todo o país , conta Li Xing, inclusive em Hong Kong, que decidiu suspender a aquisição de mil toneladas de melancia , apesar da insistência dos plantadores , que afirmavam sobre a inutilidade de uma injeção como essa, por ser insensata nessa ramo de negócios . Não adiantou,  os pedidos foram suspensos, com prejuízos de US3,8 milhões . E quem vai pagar essa conta ?


Dos três casos , dois tratam do próprio trabalho do jornalista e o terceiro , da reação do público diante de anúncios de publicidade mostrados na televisão .


O primeiro começou no dia 15 de junho , com a reportagem intitulada " Trabalhadores da Foxconn: as máquinas obrigam vocês a trabalhar 12 horas por dia ". A iPod lançou uma investigação , pois se tratava de um trabalho terceirizado para ela . A Foxconn deu uma entrevista coletiva uma semana depois , convidando jornalistas para visitarem a fábrica e examinarem, eles mesmo , as condições de trabalho da empresa . No dia 30 de junho , os diretores reclamaram oficialmente ao jornal , pedindo que fosse suspenso esse tipo de reportagem, e no dia 4 de julho entraram com processo contra os jornalistas , por não terem sido atendidos pelo jornal.


O segundo caso , o das melancias contaminadas, parece mais claro , com análises aqui e ali sobre o trabalho dos jornalistas . Por exemplo , os repórteres não entrevistaram bioquímicos , médicos , autoridades da área da saúde ou feito análise do material recolhido. A reportagem foi baseada em reclamações de alguns consumidores locais , usando apenas seus nomes , sem qualificação profissional . Cada um deles deu uma versão diferente dos aditivos . Para uns, eram produtos químicos para amadurecer as melancias mais depressa . Outro , sem sobrenome , disseram ter levado amostra para ser examinada por um especialista , cujo nome não foi fornecido, que trabalha em uma instituição não determinada , e que depois de alguns testes o resultado apontou para , talvez , um colorante . Os gerentes do mercado local , diz Li Xing, foram entrevistados para trazer algum equilíbrio . Um deles disse temer que algum produto químico estivesse sendo injetado nas melancias , para que ela amadurecesse mais depressa , enquanto o outro falou que isso era impossível , pois as injeções estragariam as melancias , com efeitos negativos sobre as vendas .


No terceiro caso , envolvendo a publicidade , a reação foi dos telespectadores: operava com o conceito de moralidade , dizendo que uma publicidade como essa - de homens se gabando da potência turbinada de suas máquinas - era uma falta de vergonha . Muitas dessas reclamações, enviadas ao órgão regulador de cinema , rádio e televisão na China, tinham essa coloração. Acontece que o anúncio tinha sido colocado no ar menos de um mês depois de a AECRTC ter banido da televisão e do rádio anúncios de perda de peso e de aumento de seios e de outros produtos de beleza, por não respeitarem os direitos do consumidor e serem nocivos à saúde: em maio , o produto Ao Mei Ding, fabricado pelo laboratório Fu Hua, foi retirado de circulação . Ele prometia um aumento grandioso de seios e das 300 mil mulheres que  fizeram o tratamento ,  muitas delas tiveram de fazer mastectomia por reações adversas.


Mudanças


Parece que , na China, tendem a desaparecer expressões confusas como "uma fonte altamente responsável ", "um alto dirigente ",  " um agricultor de sobrenome Bo", "Dizem que ", " um jornal de Shanghai", "Espera-se que essa medida ", "fontes noticiosas indicaram", " um jornal de Hong Kong disse", entre outras. Claro, isso não é privilégio dos jornais chineses. Quem leu hoje o New York Times , o Le Monde, o El Pais ou La Repubblica observa muitas fontes não determinadas recusando-se a ter nome . Elas são de muitas origens , CIA , Secretaria de Estado dos Estados Unidos, diplomatas, bandidos , vítimas , crianças , mas tratam de problemas mais sensíveis e não aparecem com tanta freqüência.


Esse artigo defende então a necessidade de um jornalismo mais responsável , ao estilo ocidental ? Deixa disso, cara pálida ! Quem disse que os jornais ocidentais são responsáveis ?  Pretendemos, aqui , simplesmente constatar que as novas relações capitalistas dentro da China estão sacudindo os conteúdos da imprensa e que muita coisa ainda está para ser feita . Os exemplos referem-se ao trabalho jornalístico no caso das melancias e no caso do laboratório farmacêutico e da moral e opinião pública , no caso da publicidade . Isso mostra que muito mais coisa a ser discutida sobre os meios de comunicação na China, que vivem na encruzilhada da " comercialização dos mídias com características chinesas".


E pur si muove!

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