Fermino e as garrafinhas de cristal

Por J. A. Moraes de Oliveira Enrolada em um velho poncho, ele encontrou uma caixa de madeira envernizada, com 24 garrafinhas de cristal, arrumadas …

Por J. A. Moraes de Oliveira

Enrolada em um velho poncho, ele encontrou uma caixa de madeira envernizada, com 24 garrafinhas de cristal, arrumadas em caixilhos por ordem alfabética. Tinham um nome em latim, escrito em letras caligrafadas. Levou a caixa para junto da janela e leu as palavras esmaecidas pelo tempo: Nux Vomica, Belladonna, Calendulla, Chamomila, Aconitum Ferox.


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Fermino das Dores não gostava de mexer nos velhos guardados da fazenda. Quando era preciso fazer limpeza nos armários ou nos baús empilhados na despensa, Fermino experimentava sentimentos contraditórios. Ao mesmo tempo que ansiava por algum segredo dos primeiros tempos da fazenda, tinha receio de desencavar algo que desfizesse suas antigas ilusões da juventude.


Quando foi arrumar o grande armário da sala de jantar, descobriu algumas curiosidades, que trouxeram de volta cenas e palavras de quando era jovem e não sabia nada da vida.


O primeiro achado, os livros de medicina do tempo de estudante de seu avô. Fermino sabia que ele havia se formado na Argentina, quando ainda não existiam faculdades no Sul. O velho fazendeiro queria abrir um consultório na vila, mas passara a vida envolvido nas escaramuças da revolução e nas demarcações das terras de seus pais.


Junto dos livros de medicina, havia um livro de capa preta, com receitas de poções e ungüentos caseiros. As receitas tinham a caligrafia do avô e eram ilustradas por delicados desenhos de folhas e ervas do campo e dos matos.


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Fermino ainda era bem menino quando se debruçava à mesa da cozinha, olhando deslumbrado o avô dosar gota a gota as poções dos pequenos frascos, para atender às aflitas mulheres e crianças das redondezas que o procuravam com os mais estranhos males e dores.


As pessoas preferiam sua medicina caseira à demorada viagem para consultar com o Dr. Olavo, que só atendia na vila nos dias em que o vapor da Navegação Aliança chegava da Capital. E além disso, o avô de Fermino não cobrava pelas consultas, sua exigência era que trouxessem um frasco transparente e imaculadamente limpo.


Eram pacientes agradecidos e fiéis, que voltavam para se queixar de uma machucadura que não sarava, de uma persistente dor nas costas ou da tosse seca provocada pelo cigarro de palha. E sempre traziam modestos e comovedores presentes, que atravancavam o corredor da casa - vidros de mel de eucalipto, um lombo de leitão assado, uma rapadura de amendoim ou uma braçada de flores do campo.


O velho se enternecia com aqueles presentes e dizia baixinho:


"Não precisava se incomodar, minha filha, não precisava?".


***


O tempo passou e o avô de Fermino foi proibido pelo Dr.Olavo de cavalgar e lidar com o gado. Sobrou-lhe apenas o prazer de atender os pacientes, que continuavam a subir a estrada da porteira, em busca de alívio para suas penas. Agora eram os filhos e sobrinhos dos pais e mães curados pelas poções da caixinha de madeira.


Logo as garrafinhas ficaram vazias e foi preciso repor as essências para o preparo de novas poções. Fermino recebeu o encargo de viajar até a Capital em busca das preciosas essências. Mas a viagem foi uma decepção, pois no endereço indicado, encontrou portas fechadas e o aviso que a farmácia havia encerrado seus negócios.


Foi a avó de Fermino que sabiamente resolveu a situação. Sem revelar a falta das essências, discretamente encheu as garrafinhas de cristal com água destilada. Assim, o velho fazendeiro continuou feliz, atendendo as pessoas que o procuravam.


E para o espanto de Fermino, ficavam curadas depois de tomar as poções.

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