Fome (IV)

Por Mario de Almeida* “Não fora para tão longo amor tão curta a vida”. (Sonetos ? Camões) Já escrevi aqui que há poucos dias, …

Por Mario de Almeida*

"Não fora para tão longo amor
tão curta a vida". (Sonetos - Camões)

Já escrevi aqui que há poucos dias, em Genebra, por iniciativa de Lula, os presidentes da França, Jorge Chirac, do Chile, Ricardo Lagos, e o secretário geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan, aprovaram uma "Declaração de ação contra a fome e a pobreza". Escrevi, também, que essa referência à ONU me levaria, afinal, à extraordinária personalidade de Josué de Castro, figura exponencial do século 20 neste país de famintos.
Josué Apolônio de Castro, como médico, cientista e professor, foi um ativista nacional e internacional contra a fome. Qualquer estudo sobre a fome no Brasil e no mundo não pode desprezar as pesquisas, obras e conclusões desse obstinado lutador nascido no Recife em 1908 e falecido no exílio, em Paris, em 1973. Ele mesmo era filho de um sertanejo retirante da seca.
Entre outros destaques, Josué de Castro presidiu o Conselho da ONU para a Agricultura e a Alimentação (FAO), em 1952, exerceu o mandato de deputado federal, pelo PTB - 1955 a 1963 - e, em seguida - 1963-64 - foi embaixador brasileiro junto aos organismos internacionais da ONU, até ser cassado - suprema glória - pela ditadura militar que se auto-proclamou a "Redentora".
Ao receber da "Redentora" esse certificado de notório saber e de cidadania ativa, já lecionara Antropologia Física na então Universidade do Distrito Federal, onde criou o Instituto de Nutrição e, em 1947, assumira a cátedra de Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, atual UFRJ.
Além de três indicações para diferentes categorias do Prêmio Nobel, Josué de Castro recebeu inúmeros prêmios, como o Pandiá Calógeras, 1937; Prêmio José Veríssimo, da Academia Brasileira de Letras, 1946; Prêmio Roosevelt da Academia de Ciências Políticas dos EUA, 1952; Grande Medalha da Cidade de Paris, 1953; Prêmio Internacional da Paz, 1954; e foi condecorado como Oficial da Legião de Honra, França, 1955. Quando recebeu a Medalha da Cidade de Paris, sua obra revolucionária no campo da alimentação foi comparada à que realizara Copérnico no campo da Astronomia. E quando o escritor francês Vercors lhe fez a entrega do Prêmio Internacional da Paz, colocou a importância de sua obra no mesmo nível à de Pasteur, Einstein e Mitchurin, este o agrônomo e cientista russo que no século 19 revolucionou a teoria da hereditariedade. São tão grandes as diferenças culturais entre alguns países que, enquanto Josué de Castro é quase um anônimo fora da comunidade científica brasileira, Mitchurin é o nome que há muito tempo foi dado à cidade natal do agrônomo.
Autor de obra científica, Josué também focou a fome nas suas incursões literárias. Geopolítica da Fome, prêmio da Academia de Ciências Políticas dos Estados Unidos, também laureado na França e na União Soviética, foi uma prova que o cientista brasileiro estava acima da intolerância ideológica. Outro livro - Geografia da Fome - lançado em 1946, ganhou tradução em 25 idiomas e 14 edições no Brasil.
Inútil tentar reduzir num artigo toda a grandeza desse apóstolo contra a fome que só no "Google", em língua portuguesa, aparece em mais de 2.500 sites.
Certa vez, discursando na Câmara dos Deputados, percebendo a apatia de seus pares não perdoou: "Quando eu falo em fome refiro-me ao apetite sem esperança".
No prefácio de seu livro de ficção, Homens e Caranguejos, Josué refere-se aos violeiros que também cantam os males da fome:
"É o dia de luto

no ano que no sertão

se finda o mês de janeiro

e ninguém ouve o trovão?"

Para quem não está de dieta, bom apetite.
* Mario de Almeida é jornalista, publicitário, dramaturgo, autor de "Antonio?s, caleidoscópio de um bar" (Ed. Record), "História do Comércio do Brasil - Iluminando a memória" (Confederação Nacional do Comércio) e co-autor, com Rafael Guimaraens, de "Trem de Volta - Teatro de Equipe" (Libretos)
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