Fridolino e o Cliente que não existia

Por J.A.Moraes de Oliveira Entre nós, os primeiros freqüentadores do "Floresta Negra", existia um sentimento inconfessado de culpa. Como um pacto entre conspiradores, evitávamos …

Por J.A.Moraes de Oliveira

Entre nós, os primeiros freqüentadores do "Floresta Negra", existia um sentimento inconfessado de culpa. Como um pacto entre conspiradores, evitávamos comentar com estranhos a qualidade dos pratos que saboreávamos no restaurante que havíamos descoberto. Semana após semana, durante os anos 60 e início dos 70, o feiticeiro Fridolino Schirmer e sua frau serviram a melhor comida alemã que Porto Alegre conheceu, desde que ele deixou o restaurante do Clube Germânia, na Praça Júlio de Castilhos.


Os que freqüentaram o antigo Germânia dos velhos tempos, falavam com emoção de um raro Beef Tartar que o Fridolino preparava à mesa, usando seus dons de alquimista. Depois que ele deixou de preparar a iguaria, percorri incontáveis cardápios, atrás de um Beef Tartar decente, já que o Fridolino se recusava a prepará-lo na nova casa.


Ele fazia um muxoxo e dizia que o Beef Tartar era prato de camponeses e que não tinha lugar em uma casa fina, com comida civilizada. Quando a gente insistia, ele metia o cardápio debaixo de nosso nariz e afirmava que o Haddock com nata estava excelente. Acovardados, nós sempre cedíamos.


A nossa conspiração de silêncio era motivada pelo temor que os cristãos novos chegassem e ocupassem as poucas mesas, aumentando ainda mais a fila de espera nas sextas-feiras e nos sábados à noite. Felizmente para nós, os porto-alegrenses ainda não haviam adotado o hábito de jantar fora várias vezes por semana. Mesmo assim, o exíguo espaço entre a porta de entrada e o balcão ficava congestionado com os que esperavam mesa, com um olho guloso nos pratos que chegavam da cozinha.


No "Floresta Negra", nem sempre se recebia o prato solicitado, pois muitas vezes o Fridolino discordava e simplesmente decidia mudar o pedido. Então era necessário insistir e convencê-lo a servir aquilo que se queria comer. Eu e minha mulher sempre pedíamos Fígado de Aves a Montalière, mas muitas vezes comemos um Haddock com Nata pela simples razão que o Fridolino decidira que naquela noite, era o melhor para nós.


Certa vez, ele inventou um cliente que não existia. Tudo começou em uma noite de inverno, quando levei ao "Floresta" um empresário da Alemanha, que não acreditava que se podia comer um autêntico Pato com Repolho Roxo em Porto Alegre.


O homem era um Doktor Paul Freiburg e eu o ciceroneava a pedido de um cliente da agência. Depois de algumas garfadas, o alemão pediu para chamar o Fridolino e quase foi às lágrimas elogiando o pato, que lembrava dias de sua infância, na distante Bavária.


Eles conversaram por muito tempo em alemão com sotaque bávaro e por alguma estranha razão - que nunca consegui entender - daquela noite em diante, o Fridolino passou a me chamar de Doktor Paul.


Alguns jantares depois, expliquei-lhe pacientemente que este não era o meu nome e sim o daquele alemão que tanto elogiara o Pato com Repolho Roxo. Ele torceu o nariz, anotou nosso pedido - e continuou a me tratar de Doktor Paul. Sua teimosia acabou prevalecendo e quando eu ligava para fazer reserva, passei a me identificar como Doktor Paul, sendo saudado cordialmente em alemão da Bavária e prontamente atendido.


A última vez que vi o Fridolino Schirmer foi depois de uma longa ausência em viagem. Com um sorriso, ele me chamou de Doktor Paul e perguntou se eu iria comer meu prato preferido, o Pato com Repolho Roxo.


Eu disse que sim. E nunca mais consegui saborear o Fígado de Aves a Montalière.

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