Imprensa em dívida

Por Claudio Weber Abramo Uma das carências que a crise do mensalão está colocando em foco diz respeito à imprensa. Para quem quer ver, …

Por Claudio Weber Abramo



Uma das carências que a crise do mensalão está colocando em foco diz respeito à imprensa. Para quem quer ver, o escândalo evidenciou a existência de vulnerabilidades gritantes na forma como o Estado brasileiro é conduzido, e que extrapolam em muito o âmbito dos Correios. A imprensa, porém, tem sido incapaz de perseguir o gancho oferecido pelo ex-deputado Roberto Jefferson quando fez suas primeiras acusações.


O que Jefferson mostrou foram os efeitos do loteamento do Estado entre partidos em troca de apoios políticos. Será que alguém com domínio mesmo que rudimentar de suas faculdades imagina que o loteamento afeta apenas os Correios e o Instituto de Reseguros do Brasil (os entes inicialmente referidos por Jefferson)?


Apesar disso, nenhum jornal sequer tentou fazer o mapeamento da partilha política do Estado. Quais partidos dominam quais setores, quais diretoriais de quais estatais? Que negócios estão sendo feitos nesses lugares? É evidente que esse fenômeno não foi inventado pelo governo Lula, e não se restringe ao governo federal. Acontece igualzinho nos estados e municípios, e responde por imensos desperdícios e roubalheiras intermináveis. É evidente que a oposição ao governo Lula não tem nenhum interesse em desencavar as raízes do problema, porque opera exatamente da mesma forma nos lugares em que estão no poder, e sempre operaram assim.


A imprensa não tem ajudado a exibir essas mazelas, preferindo seguir os pequenos fatos do cotidiano e as patéticas escaramuças de políticos cujos nomes amanhã ninguém sequer recordará.


Ao não prestar atenção nos ganchos gritantes oferecidos pela crise, a imprensa brasileira ajudou a aspergir os fumos que compuseram a cortina de fumaça atrás da qual se escondem os arquitetos do mensalão. O resultado disso é que, para citar só um exemplo, não se foi atrás da origem do dinheiro do mensalão. Para os mensaleiros e para os jornais, dinheiro nasce em árvore.


Por que isso acontece? Por que a imprensa não consegue cobrir adequadamente um caso tão grave como o do mensalão?


Quando meu pai, o jornalista Claudio Abramo, começou a trabalhar no Estadão, na década de 1940, fez uma reportagem sobre a atividade econômica das populações do litoral Norte de São Paulo que se estendeu por mais de trinta edições. Cada matéria ocupava algo como meia página de jornal - e o jornal, naquela época, tinha o tamanho de uma toalha de mesa. Vá lá, um pouco menos.


Hoje, tal coisa seria impensável, em primeiro lugar por causa da penúria financeira das empresas de comunicação, que levou a uma redução drástica do contigente das redações. Por exemplo, as sucursais de Brasília dos grandes jornais têm hoje metade ou menos dos repórteres que tinham três ou quatro anos atrás. Como de toda forma o jornal precisa ser publicado todos os dias, isso exige dos repórteres que produzam um determinado número mínimo de linhas todos os dias.


Isso torna muito difícil a um jornalista investigar sistematicamente um assunto. Uma investigação jornalística em profundidade demanda um, dois meses de dedicação na perseguição de pistas que podem não dar em nada, na identificação e convencimento de fontes, na consulta interminável de documentos perdidos em arquivos. Não é possível fazer isso e ao mesmo tempo produzir as tais linhas diárias.


Outro problema de fundo com a impresa tem origem nas brutais desigualdades econômicas regionais. Existem no Brasil algo como 1.200 jornais diários (o número é sujeito a chuvas e trovoadas). Destes, não chegam a vinte, talvez quinze, aqueles capazes de manter redações que produzem material próprio. Desses vinte ou quinze, só três são "nacionais": Estadão, Folha e Globo. E são "nacionais" por convenção, porque sua venda se concentra nos estados em que são respectivamente produzidos. A esse grupo talvez se possa adicionar o Correio Braziliense, porque é lido na capital, e o Estado de Minas, o jornal mais relevante do grupo dos Diários Associados a que também pertence o jornal brasiliense. Há grupos regionais concentrados no Sul (Sirotsky, Paulo Pimentel), onde há produção local de riqueza e conseqüentemente de anúncios, e acabou-se.


O restante são jornais possuídos por oligarquias locais. Esses veículos não têm nenhuma viabilidade financeira (não há anúncios), sendo mantidos mais mortos do que vivos para servir aos interesses políticos de seus controladores. Para se fazer uma idéia, cerca de 94% de todo o material sobre corrupção publicado nos 60 principais jornais diários de todos os estados e que são creditados a agências são produzidos pelas duas agências que dominam esse mercado, Estado e Folhapress (incluindo-se, nesta última, as diversas marcas sob controle do grupo, como UOL, Folha Online etc.). Ao noticiário de muitos desses jornais regionais se deve adicionar o material que eles publicam com crédito à "redação" ou à "sucursal de Brasília", mas que na verdade é simplesmente pirateado das agências, sem crédito. (Os dados são extraídos do projeto Deu no Jornal, mantido pela Transparência Brasil.)


No fim das contas, quase todo o noticiário da imprensa escrita (o espaço não permite abordar as revistas semanais, que ficam para outra ocasião) brasileira nasce na Folha e no Estado e, em escala menor mas ainda assim relevante, no Globo. Se a qualidade da cobertura do escândalo é baixa, são esses os responsáveis.


 

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