Inconveniência em nome da conveniência

Por Érico Valduga Não admira que somente militantes, entre eles diversos assalariados direta ou indiretamente pelo poder público, tenham assinado o manifesto de Armindo …

Por Érico Valduga
Não admira que somente militantes, entre eles diversos assalariados direta ou indiretamente pelo poder público, tenham assinado o manifesto de Armindo Trevisan, que circula na Internet, e se destina a tentar explicar, pois resposta não é, o autoritarismo que a sociedade gaúcha não quer ver instalado no Estado.
Pior cego é o que não quer ver. Basta percorrer os cartórios judiciais para constatar que o governo perseguiu e pressionou mais jornalistas nos últimos quatro anos do que os governos do período compreendido entre 1889 e 1998. Questionar esta realidade só pode ser cegueira ideológica, pois deboche ou má-fé não seriam, vindos de pessoas com notáveis serviços prestados ao Rio Grande.
"Perseguidores de ontem", diz o manifesto que tenta explicar o inexplicável. Quem, para que haja a clareza necessária à livre expressão? E quem foi perseguido? Quem "correu graves riscos para salvar as liberdades"? Os poderosos de hoje? Ora, a maioria esteve abrigada em cargos públicos de todos os níveis, não raro assessorias com função gratificada, a salvo das maldades do regime ditatorial militar que parece ter feito escola ao sul do rio Pelotas - agora com civis no mando. Protegidos pelos estatutos do funcionalismo e do sindicalismo, ou pela casa-comida-roupa lavada-e mesada dos pais, o máximo que sofreram foi a ressaca do dia seguinte. Se há feridas não cicatrizadas, são úlceras decorrentes do consumo de bebidas alcoólicas nos bares da moda na época, ao longo de intermináveis discussões sobre como instalar aqui regimes autoritários que as sociedades de outros países derrubaram, em busca de liberdade.
Vamos adiante. A ex-funcionária da agência de turismo do arrecadador de fundos ilegalmente obtidos, Diógenes de Oliveira, processado pela Justiça por falcatruas no Clube de Seguros da Cidadania, foi levada do Estado pelo Departamento de Polícia Federal e encontra-se sob a guarda do programa de proteção de testemunhas do Ministério da Justiça. Linhas acima vimos argumentos que estão longe de serem definitivos, e agora pede-se argumento definitivo para a proteção de alguém cujo testemunho no episódio escabroso é incontrastável e incontornável. Qual é o argumento definitivo que querem? A morte dela?
Surpreende-me que jornalistas, mesmo ideologizados, tenham subscrito um texto em que se cita que "os fatos não falam por si". Como não? Qualquer foca sabe que os fatos são a matéria-prima objetiva e razão da existência do jornalismo, e o relato destes fatos compõe o dia-a-dia do trabalho nas redações. Hoje, por exemplo, as pressões a cidadãos de diversas profissões - não são só jornalistas, não - que pensam com suas cabeças e não pela cartilha são fatos que falam por si, não precisam de interpretação. Amanhã, mas somente amanhã, poderão receber versões de historiadores e de ensaístas de plantão, ou, até, de jornalistas bissextos.
Inclui-se na vida dos fatos o episódio do Relógio dos 500 Anos. Ei-los, como são conhecidos até pelas pedras das ruas:

- Militantes impuseram a sua vontade pela violência e depredaram o relógio; policiais militares tentaram evitar a depredação, mas foram afastados por ordem de funcionários da segurança pública.

- Preocupada com a selvageria e o desmando evidenciados, a sociedade viu o governante confortar o procedimento, algo assim como "faz parte da democracia". Dois jornalistas, entre muitos, expressaram opinião contrária, observando que absurdos como aquele não fazem parte da democracia.

- Dizendo-se difamado, o governante recorreu à justiça, que condenou os jornalistas.
O foco da discussão é se agiu certo o governante ao usar panos quentes com seus partidários, e não o seu direito de recorrer, que em momento algum foi contestado. Discute-se o intento do recurso judicial à luz da liberdade de imprensa, pois, a rigor, qualquer texto pode ser atacado, mormente por quem dispõe de meios oficiais qualificados e não-onerosos para fazê-lo. Discute-se a intenção de um governante - o resto é conseqüência.
Tinha razão a professora de Literatura da Ufrgs, Lia Scholze, na mensagem encaminhada a centenas de pessoas no Estado e fora dele para angariar assinaturas ao manifesto. Afirmou ela que o texto "seria um manifesto à livre expressão", mas ela parece não acreditar neste atributo democrático, pois seu nome não consta da relação de signatários. Pode ser efeito da época eleitoral, quando há quem peça votos para um candidato, mas não vota nele; ou, pior, pode ser prova provada do autoritarismo oficial instalado no Rio Grande, que provoca comportamentos tipo "dá o tapa e esconde a mão", típico dos "perseguidos". Tinha mesmo razão: o texto seria um manifesto - se não contrariasse os fatos.
* Jornalista

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