Índio quer Apito

Por Mario de Almeida Em 22 de outubro de 1963, a Última Hora gaúcha chegou às bancas com a seguinte manchete: “Arquivos secretos da …

Por Mario de Almeida
Em 22 de outubro de 1963, a Última Hora gaúcha chegou às bancas com a seguinte manchete: "Arquivos secretos da polícia gaúcha entregues aos EUA". Duas pessoas apenas, ambas falecidas, conheceram a história dessa manchete em todos os seus detalhes: Ary Carvalho e Nestor Fedrizzi, diretor e editor do jornal.
Eu era chefe de reportagem e assinava a coluna "Sem Censura", uma coluna agressiva e impiedosa com o segundo governo Meneghetti, quando a truculência e a corrupção policiais já eram prévias da Ditadura.

Eu recebera na redação, na véspera, Floriano Maia D?Ávila, procurador do Estado no governo anterior, de Leonel Brizola. Ele me relembrou que Brizola recusara um milhão de dólares para prestar o mesmo serviço, ou seja, permitir o acesso dos gringos às fichas dos elementos que compunham os quadros das esquerdas gaúchas.
Naquela versão, o Ponto IV, um braço auxiliar da CIA, estava doando aos governos estaduais que aderiram ao pacto veículos, armas, munições e - até - apitos para guardas de trânsito. Soube-se que, pelo menos, entraram no "pacote", em Pernambuco, Cid Sampaio, em Minas, Magalhães Pinto, na Guanabara, Carlos Lacerda, e, em São Paulo, o "rouba, mas faz", Adhemar de Barros. No Rio Grande, Meneghetti disse "amém" e fechou, inclusive, um bom negócio, pois os arquivos anteriores haviam sido destruídos por ordem de Brizola e os recentes tinham apenas os nomes mais notórios, como o de Luiz Carlos Prestes.
Após agradecer e despedir-me do antigo procurador, fiquei ruminando as conseqüências de noticiar o pacto sem provas legais e, também, em todas as dificuldades de obtê-las por canais competentes, pois a forma mais evidente - Assembléia Legislativa - era dominada, em sua mais absoluta maioria, pelo governo Meneghetti, uma aliança de partidos onde apenas o PTB e o PS estavam fora.
Coloquei o assunto numa reunião a portas fechadas no "aquário" (tradicional sala de jornal com uma parede de vidro de onde se vê a redação) do Ary, com ele mais o Nestor. Discutidos todos os pontos da questão, decidimos, o jornal e eu, partir para a divulgação do pacto, independente das conseqüências legais, fáceis de se prever.
Ary e Fedrizzi pediram que eu redigisse o editorial e não fui censurado em "Sem Censura", onde baixei o cacete, com minha habitual afabilidade, nos entreguistas de plantão.
Impossível esquecer o título dos editoriais (não me lembro se publicados em dois ou três dias): "Índio quer apito", óbvia alusão ao mais insignificante dos "brindes" do Ponto IV.
As "conseqüências" levaram Ary Carvalho, responsável legal pelos editoriais do jornal, mais o afável articulista do "Sem Censura", a engraxarem seus 20 dedos das mãos, indiciados que foram pelos crimes de difamação, injúria e calúnia. O autor da ação era o secretário de Segurança do Estado, General Amaro da Silveira.
Ao descermos da Praça da Matriz, em vez de tomarmos o rumo da redação, resolvemos, automaticamente, ir para o "Cotillon", clube fechado da Salgado Filho, lavar melhor as mãos, com álcool.
Naquele final de tarde, com a sensação de que a honestidade profissional e o exercício da cidadania, às vezes, sujam literalmente nossas mãos, ratifiquei, em companhia do Ary, entre USA e Escócia, minha eterna fidelidade à Escócia. On the rocks, please.
* Mario de Almeida é jornalista e publicitário

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