Irrelevâncias essenciais

Por Ana Flores Num jornal do sul, li a crônica de Arnaldo Jabor, "A morte tem vida própria". Sempre intenso e criativo em suas …

Por Ana Flores

Num jornal do sul, li a crônica de Arnaldo Jabor, "A morte tem vida própria". Sempre intenso e criativo em suas idéias, o cronista fala da inevitável chegada da morte para todos e lamenta a partida de alguns amigos numa só semana.  E tenta imaginar-se morto, conjeturando sobre do que ele realmente sentirá falta quando partir. Segundo ele, não será dos megashows nem dos grandes amores, mas do que ele genialmente chama de "irrelevâncias essenciais". Certos lugares, escritores e músicos inesquecíveis, os papos de cinéfilos no bar, a insegurança com a primeira namorada, "pernas cruzadas de mulheres inatingíveis" e os terrenos baldios de sua infância. A lista segue longa, plena da perspicácia de um observador sensível como é Jabor.


Para quem ainda não a conhece, recomendo a leitura integral da crônica. De minha parte, não consigo parar de pensar nessa expressão tão paradoxal quanto verdadeira, que são as irrelevâncias essenciais da vida. Que podem ser bem diferentes de uma pessoa para outra, justamente o que as tornam mais encantadoras e surpreendentes.


Se, para uns, certos papéis e jornais amarelados não podem jamais ser jogados fora pelo que carregam de significados essenciais, pessoais e intransferíveis, para outros são apenas um foco de poeira e traças. Se alguém chora quando ouve "Retrato em preto e branco" ou os versos "Você é a saudade que eu gosto de ter, só assim sinto você bem perto de mim outra vez", outros podem considerar frescura, que chorar por amor está fora de moda. Tolinhos?  não entendem nada de dor de cotovelo, daquelas essenciais, que entortam o coração e nos fazem uivar pra lua em pleno meio-dia.


Embarcando na viagem de Jabor, diria que quando eu partir vou sentir falta do cheiro de maresia no Rio, da água transparente do mar do Arpoador, das amendoeiras da rua da minha infância no Jardim Botânico, do cheiro dos cedrinhos de Araras, inesquecíveis e essenciais por toda a minha vida, entre tantas outras querências. Minha razão para gargalhar que nem boba, me emocionar com um gesto imperceptível a outros olhos, acordar feliz ou com o ânimo no pé pode não ser a mesma de outras pessoas. Mas quaisquer que sejam as razões, as minhas e as alheias, pra cada um de nós elas são essenciais, embora para outros olhos pareçam irrelevantes. O importante é que emoções eu vivi?


*Ana Flores é redatora e revisora. Autora do livro "Corporco e outros contos". Publica, mensalmente, desde 2002, crônicas na revista Folha Carioca. O artigo foi publicado originalmente no site www.comunique-se.com.br

Comentários