Jornalismo Tutelar

Por João Carlos Ferreira da Silva Há em desenvolvimento no País um novo tipo de jornalismo, mais na televisão, mas também no rádio e …

Por João Carlos Ferreira da Silva

Há em desenvolvimento no País um novo tipo de jornalismo, mais na televisão, mas também no rádio e nos jornais. Mistura um pouco das antigas "páginas de serviço", muito conteúdo de auto-ajuda e fortes doses de pretensão e arrogância; como ainda não li nem ouvi nada a respeito, vou chamá-lo, à falta de melhor termo, de Jornalismo Tutelar.

Ligo a TV, e está lá: "A seguir, as dicas para empregar bem o seu 13º salário". Ou: "Veja como escolher a babá para seu filho".

Ligo o rádio, e ouço: "Especialistas revelam como fazer para escapar do endividamento". Ou: "Caminhe pelo menos uma hora por dia".

Abro um jornal e não tem jeito: "Cinco motivos para assistir ao Grenal". Ou: "Os filmes que você não pode perder".

(Posso, sim, tenho certeza de que posso; perdi a maioria dos filmes nos últimos anos, e aqui estou. Também não preciso que me digam por que assistir a um bom jogo; quem precisa não é torcedor, talvez nem valha a pena perder seu tempo.)

Voltando ao assunto, desconfio que isso começou com a declaração do Imposto de Renda.

Nos tempos da ditadura, um dia o general Geisel foi fazer sua declaração, para corresponder à pose de homem austero, que supostamente não usava a máquina do Estado, e não conseguiu. Era complicado demais, e ele ficou tão irritado que mandou mudarem os formulários e os cálculos exigidos.

Os técnicos mudaram, e acho que foi aí que os jornalistas se deram conta de que orientações a respeito poderiam ser bem recebidas pelo público.

Anos depois, o formulário é eletrônico, os cálculos também, tudo ficou muito mais simples, e 25 milhões de contribuintes fazem a declaração. Desses, talvez 1 ou 2 milhões sejam declarantes de primeira vez, e outros tantos encontrem alguma dificuldade por situações especiais. E assim, para "orientar" uns 3 ou 4 milhões de pessoas, no máximo - e, provavelmente, muito menos -, todos os anos TV, rádio e jornais passam dois meses atordoando quase 200 milhões de brasileiros com entrevistas, espaços especiais, tira-dúvidas e outras invenções sobre Imposto de Renda.

Pelo menos, como o prazo de entrega da declaração não é mais prorrogado, ficamos livres disso em 30 de abril, impreterivelmente. Mas aí se aproxima o Dia das Mães, e é hora de a gente aprender a escolher o presente, saber quanto cada cidadão vai gastar em média (qual o sentido dessa informação para quem não é comerciante?), entender por que um celular pode e uma batedeira não.

Satisfeito o comércio, que precisa faturar para anunciar mais e vice-versa, chegou o grande momento: depois de gastar com réveillon, férias, material escolar das crianças, IPTU, IPVA e Dia das Mães, certamente devemos estar todos endividados, e o Jornalismo Tutelar não perde a chance. "Entenda por que é importante fazer o orçamento familiar". "O risco de gastar além do que se ganha". "Saiba como sair do endividamento" (pagando as contas, ora!). "Antecipe sua restituição, mas cuidado com os juros".

Ué, mas já não deveríamos estar, de algum modo, preparados? Já não passamos por isso outras vezes, até com juros e inflação mais alta?

Passamos, mas a Globo concluiu que a nova classe média não sabe, logo é preciso ensiná-la. E, quando a Globo conclui, as outras imitam, o rádio vai atrás e os jornais repercutem de graça, favorecendo, de forma burra, a mídia concorrente.

Então, o casal emergente, que ganha na soma uns R$ 2.500,00 por mês, tem que aprender a gastar dentro disso, ou, melhor ainda, fazer uma poupança. Quatro ou cinco anos atrás, ninguém se preocupava em dizer aos dois como viver com parcos R$ 30,00 por dia e muita insegurança no emprego; mas, já que resistiram, conseguiram aumentos e agora são classe média, é preciso enquadrá-los.

E tome tutela! Como economizar, como aproveitar as sobras, como levar uma vida saudável, como preparar a gravidez, como se comportar no trabalho, como agir no metrô, como se divertir no fim de semana. A TV digital, que supostamente nos traria interação, está cada vez mais de cima para baixo, mais impositiva, mais do tipo papai-sabe-tudo.

Já Dona Mariquinha, viúva sempre atenta às finanças, levou um susto ao ouvir que precisa evitar os juros, que é melhor juntar o dinheiro e só pagar à vista. A máquina de lavar estragou de vez, mas ela vai passar quatro anos esfregando roupa na mão, porque aquela apresentadora bonitinha disse na TV que comprar outra agora, à prestação, seria um grande risco.

E, enquanto não se aproxima o 13º, para que os entendidos nos ensinem como gastá-lo, é preciso achar outros assuntos. Caixa de papelão em vez de sacolinha plástica no supermercado, bicicleta em cidades cheias de lombas e chuvas, reforma em casa sem gastar muito, e por aí vai.

Fico imaginando como seria um cidadão que seguisse inteiramente os preceitos desse jornalismo. Econômico, poupador, ciclista, reciclador, espectador de todos os filmes recomendados, torcedor conforme o sugerido pelos jornais, caminhante, jamais endividado, sempre muito bem comportado?

Parece meio cansativo.

Mas haveríamos de suportá-lo, é claro, porque logo sairia uma matéria salvadora: "Cinco dicas para aguentar o chato que o Jornalismo Tutelar construiu".

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