La Tebaldi

Por J. A. Moraes de Oliveira Lembro muito bem de seu sorriso de enlevo e do olhar perdido em um lugar distante. É a …

Por J. A. Moraes de Oliveira

Lembro muito bem de seu sorriso de enlevo e do olhar perdido em um lugar distante. É a imagem que guardo de meu pai, naquelas noites de domingo, no sobrado da Vasco da Gama. Ele ficava de olho no Junghans, até que, dois ou três minutos antes das 8h, ligava o Telefunken de 16 válvulas e se acomodava na cadeira ao lado.


O grande olho mágico piscava, as válvulas se aqueciam lentamente e a estática crepitava. Quando batiam as 8h, o alto-falante vibrava com os acordes de La Forza del Destino, enquanto a voz empostada do speaker argentino anunciava "El Mundo de la Opera ". Estávamos ouvindo a Radio Belgrano de Buenos Aires.


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Era uma hora prazerosa - mesmo sem entender as falas dos personagens, éramos envolvidos pela música de Verdi e Puccini e pelas vozes poderosas de Beniamino Gigli, Tito Schipa e Enrico Caruso. Um ritual que se repetia aos domingos, à mesma hora - o pai sintonizando o programa para saber a ópera e os intérpretes da noite.


E abria um grande sorriso, quando era uma de suas queridas: La Traviata , Tosca, La Bohéme , Madame Butterfly ou o Tannhäuser de Richard Wagner.


A todas essas, eu e minha irmã, sentados no tapete da sala, jogávamos o jogo que inventamos para saber qual era o melhor cantor. Quando se ouvia uma voz mais potente ou um agudo mais alto, nos virávamos para a cristaleira do outro lado da sala. Quantos mais copos de cristal tilintavam, mais nós aplaudíamos.


Nosso pai tinha seus critérios de apreciador: Beniamino Gigli, o primeiro entre os tenores, e Tito Gobbi, o melhor dos barítonos. No entanto, sua verdadeira empolgação se mostrava de todo quando o rádio anunciava uma grande diva, como Amelita Galli-Curci ou Renata Tebaldi.


Minha mãe sempre deixava a sala para adiantar o jantar. Mas, quando ouvia a voz inconfundível de Renata Tebaldi, ela se chegava para ficar perto de meu pai. Tocados pela mágica da música e mesmo sem saber uma palavra em italiano, cantarolávamos as árias, como se estivéssemos debaixo do chuveiro.


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A segunda-feira era o dia do encontro semanal do grupo de remadores, do qual meu pai fazia parte. Eram os alemães do "Ruder Verein" e os italianos do "Canottieri Duca degli Abruzzi", homens maduros que ainda remavam todos os domingos pela manhã e que também eram apaixonados pelo turfe e pelo bel canto. Eles saiam de seus escritórios no centro da cidade e se acomodavam em uma mesa de canto no bar Lilliput da Otávio Rocha.


À medida em que se repetiam as rodadas de chopp e schnaps, a conversa ficava mais e mais entusiasmada. Os assuntos eram recorrentes - qual era o barco mais veloz no Guaíba, ou o cavalo mais rápido nos 800 metros . E, principalmente, quem seria o maior tenor e a maior soprano de todos os tempos.


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Em um domingo de maio de 1947, fui, como sempre, até a banca de jornais da Praça Júlio de Castilhos, comprar o "Correio do Povo". Meu pai começava a leitura pela página de esportes, procurando por novidades do remo ou turfe. Mas, naquele dia, ele se reteve por mais tempo na primeira página do jornal.


Cheguei perto e espiei por cima de seu ombro. Ele me mostrou a notícia - o famoso Teatro La Scala , de Milão, que fora semidestruído durante a guerra, seria reinaugurado naquela noite, em grande festa de gala.


A peça escolhida era uma homenagem a Giuseppe Verdi: a sua última ópera, Falstaff, estreada naquele mesmo teatro. O regente, o grande Arturo Toscanini, e a prima donna, ninguém menos do que Renata Tebaldi.


Meu pai dobrou lentamente o jornal e ficou pensativo. Naquele domingo, ele não ligou o Telefunken e a casa permaneceu estranhamente silenciosa.


Eu demorei muito tempo para entender que, naquela noite, meu pai não estava conosco, mas na platéia do La Scala , festivamente iluminado, ouvindo La Tebaldi cantar.


*J.A.Moraes de Oliveira é jornalista e publicitário.

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