Legislação brasileira limita a liberdade de imprensa

Por Daniel M. Boulos A tendência verificada em alguns países da América Latina de restringir a liberdade de imprensa aliada, internamente, a diversos casos …

Por Daniel M. Boulos
A tendência verificada em alguns países da América Latina de restringir a liberdade de imprensa aliada, internamente, a diversos casos de ataques à liberdade de imprensa - com a tentativa de restringi-la a ponto de anulá-la - e aos recentes ataques a jornalistas no exercício da sua função - em manifestações populares ou fora delas -, fez com que o tema da liberdade de imprensa merecesse, novamente, as atenções do público e das autoridades em geral.
Já não é de hoje que se discute, no Brasil, a legitimidade, a pertinência e a intensidade dos limites impostos pelo Estado à atuação livre dos particulares. Quaisquer restrições, limitações ou regramentos mais contundentes impostos por qualquer dos poderes estatais - o Legislativo, por exemplo, por meio de leis, o Executivo, por decretos e o Judiciário, por meio de decisões judiciais - à livre atuação dos particulares no exercício dos seus direitos e de suas prerrogativas, soam, para alguns, como "limitação descabida", "censura", "autoritarismo" ou mesmo como um verdadeiro "atentado à democracia".
Valores como, por exemplo, a liberdade de imprensa, os direitos e garantias individuais, os direitos adquiridos, e a própria democracia são freqüentemente utilizados para justificar e embasar as críticas à tais restrições, em um verdadeiro jogo argumentativo no qual haveria, supostamente, lados excludentes entre si. Assim, alinham-se, de um lado, aqueles que defendem a validade das restrições impostas pelo Estado como forma de tornar a vida em sociedade melhor e mais segura e, de outro, os defensores da ideia de que tais restrições ferem de morte os direitos individuais e as liberdades asseguradas pela Constituição.
Com a liberdade de imprensa, não é diferente. Parece haver, de um lado, um preconceito contra a imprensa a quem parte minoritária - felizmente - da população atribui as mazelas enfrentadas pelo país, a insuficiência dos serviços públicos a ela prestados diuturnamente, o encobrimento de casos de corrupção - quando, a bem da verdade, é exatamente o contrário que ocorre -, dentre outras acusações. Por outro lado, talvez influenciada pela lembrança da ditadura militar que preponderou no país por cerca de 20 anos, parcela da imprensa, de órgãos de classe e até mesmo parte da população em geral, apresentam-se absolutamente contrários a qualquer "regulação", "regulamentação", "controle" ou "limite" ao exercício dessa liberdade jurídica, receosos - o que é compreensível face à censura que tantos anos foi imposta à liberdade de imprensa - de que possam se aproveitar dessa "regulação" para, na realidade, retomar a censura estatal à atividade da imprensa.
Ora, à luz dessas posições é conveniente brevemente analisar e esclarecer, no que toca à liberdade de imprensa, se ela é limitada, censurada ou combatida.
Primeiramente, é fundamental observar que a liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de manifestação do pensamento e da comunicação, constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito, envolvendo diversos direitos a ela conectados como o direito de informar, o de ser informado, o de opinar, o de criticar e o de buscar a informação¹. Ocorre que o exercício da referida liberdade jurídica encontra limites jurídicos na própria Constituição Federal que a garante. Com efeito, é possível encontrar diversos dispositivos que representam, direta ou indiretamente, uma limitação à referida liberdade. São exemplos disso: a proteção da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III²), com a proteção da sua integridade moral, da sua personalidade, intimidade, privacidade, honra e imagem; a proteção dispensada à pessoa que tenha direito seu ameaçado ou violado (artigo 5º, XXXV, da CF³), permitindo que ela adote medidas judiciais para evitar a consumação da lesão a direitos ou, quando esses já tiverem sido violados, para reparar a lesão; a vedação ao anonimato (artigo 5º, IV, da CF), o que permitirá a posterior responsabilização civil e penal daquele que veicular uma notícia falsa e com isso gerar danos a outrem, por exemplo (artigo 5º, V, da CF).
Assim, a liberdade de imprensa, como qualquer outra prerrogativa jurídica - ou situação jurídica subjetiva, como liberdades, direitos, poderes, faculdades, etc. - experimenta limitações no seu exercício, fruto do próprio Direito que as prevê e as regulamenta. Isto não significa que exista censura - na acepção pejorativa do termo - e nem tampouco que exista qualquer ameaça à democracia nessa regulamentação legal.
A correta compreensão do tema passa pela percepção que, ao contrário das leis, os princípios jurídicos vigentes, ainda quando contraditórios, não produzem antinomia, vale dizer, não ensejam a necessidade de se optar pela validade de apenas um deles, em detrimento do outro. Com efeito, os princípios constitucionais, muitos deles antagônicos entre si, são igualmente válidos e gozam do mesmo prestígio e importância. Ocorre que, no caso concreto, o julgador certamente terá que optar pela preponderância de um princípio sobre o outro. Essa "escolha" entre dois princípios se faz no âmbito das decisões judiciais - que apreciam casos concretos submetidos ao Poder Judiciário - e não in abstrato, em tese. O Supremo Tribunal Federal, nos casos nos quais ele analisou questões que confrontam, de um lado, a liberdade de imprensa, como valor fundamental do Estado Democrático de Direito (art. 5, IV e art. 220, da CF), e, de outro lado, os direitos da personalidade do cidadão - em especial, o direito à honra, à privacidade e à intimidade, art. 5º, X, CF -, fez menção, com acerto, como técnica de solução do caso concreto, à "ponderação de valores e interesses".
É importante notar, por outro lado, que, com a revogação da Lei de Imprensa (Lei 5.250, de 9 de fevereiro de 1967) pelo Supremo Tribunal Federal, o tema é disciplinado pelo Código Civil que, no seu artigo 187, veda o exercício abusivo de qualquer direito, liberdade, faculdade, etc.. Há, portanto, limitação, não só à liberdade de imprensa, como, também, à qualquer outro direito, prerrogativa, poder ou faculdade jurídicos. Os limites de exercício de tais direitos são, justamente, a boa-fé, os bons costumes e o fim social e econômico do respectivo direito.
É possível afirmar, portanto, que a liberdade de imprensa é limitada pela legislação em vigor mas, a despeito disso, vem sendo combatida, de forma ilegal, inconstitucional e feroz, por aqueles que pretendem simplesmente "calar" a voz dos órgãos que materializam e exercitam a referida liberdade. Também é possível afirmar, nessa perspectiva, que o combate há de ser feito não à existência de limites legais à referida liberdade jurídica mas, sim, à censura que eventualmente se pretenda a ela impor, essa sim, absolutamente abominável no estágio atual da democracia brasileira.
1 Com efeito, a Constituição Federal prevê, no artigo 5º, dentre os "direitos e garantias individuais e coletivos", o seguinte: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (??.); IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (?)". Já no artigo 220, ao disciplinar a "comunicação social", está prevista a seguinte norma: "Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição."
2 Que assim dispõe: "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (?) III - a dignidade da pessoa humana; (?)".
3 Verbis: "(?); XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (?)".
 

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