Matrix passou por aqui

Por Paulo José Cunha ? E se eu escrever “jornalismo é jornalismo, ficção é ficção”, resolve? ? Não, tem de definir as coisas bem …

Por Paulo José Cunha
- E se eu escrever "jornalismo é jornalismo, ficção é ficção", resolve?
- Não, tem de definir as coisas bem direitinho, senão vai ficar que nem aquela história de "mãe é mãe". Teu professor vai reclamar, e com razão.
- Mas, Magnólia, pensa só: se eu escrever que jornalismo não tem nada de ficção estarei mentindo, porque é só olhar um telejornal desses aí que a gente percebe claramente: a cada dia que passa, o telejornalismo, ensanduichado entre duas novelas, termina contaminado pelo clima de ficção; e a ficção das novelas e dos shows de entretenimento, por exemplo, cada vez mais usa elementos do telejornalismo, como essas entrevistas fajutas do Gugu?
- Ah. Sabe de uma coisa?
- Fala.
- Se eu fosse você não definia nada, porque esse troço ficou muito confuso. A novela agora até promove eventos como essa passeata contra as armas, você viu?
- Claro que vi. E me lembrei dos antigamentes. Minha mãe me contou que quando um órgão de imprensa patrocinava alguma causa, botava uma chamada no jornal falado, se fosse rádio; ou na primeira página, se fosse impresso; ou no telejornal, no caso da televisão.
- É, mas agora foi a novela que promoveu e fez a cobertura. E olha: fez direitinho, você assistiu?
- E eu ia perder, amiga? Soube até que aquele capítulo em que saiu a passeata foi editado na véspera do dia de ir ao ar, lembrando o tempo antigo, das novelas ao vivo.
- Enquanto o presidente da Câmara, o João Paulo Cunha, desfilava na passeata entrando na ficção pra tirar uma onda de pacifista, o Tony Ramos participava de um ato real, a passeata, mas em cadeira de rodas, embora tivesse as pernas perfeitas. Como na ficção ele não podia andar, por causa do "tiro" que recebeu, tinha de manter a pose, né?
- Pois é. E o jornalismo, com as reconstituições dramatizadas do Linha Direta, anda cada vez mais com jeito de novela. Outro dia eu fiquei tão atarantada que nem consegui distinguir. Tava passando o Linha Direta e eu perguntei pra empregada: ô, Joana, você que fica o dia todo com a televisão ligada, isso aqui é estréia de novela? Ela respondeu: Que novela nova o que, dona Noelina. É a reconstituição de um crime. Mas parece novela, eu falei. E ela: Dona Noelina, aprenda de uma vez: novela é novela, jornalismo é jornalismo, a senhora não aprendeu ainda? Uma coisa não tem nada a ver com outra. E saiu resmungando: Que coisa, a gente ensina, ensina, mas tem patroa que custa a entender uma coisa simples dessas?
- Mulher de Deus, pelas caridades! Essas empregadas de hoje não têm o menor respeito pelos patrões. Pois minha situação não é muito diferente da sua. Ando misturando tudo. Outro dia cheguei numa banca e vi na capa de uma revista dessas de fofocas da tevê: "Fernanda morre vítima de bala perdida". Fernanda era a personagem da Vanessa Gerbelli na novela. Quando eu li Fernanda pensei que podia ser uma história de verdade mesmo, afinal a mulher estava ali na foto, toda ensangüentada.
- E eu, criatura, que também passei numa banca e tinha lá na capa da revista a notícia dizendo que a Edwiges estava se divorciando do Marcos Frota? Demorou pra me lembrar que na vida real a Carolina Diekman - ô moça bonita, benza Deus - a que fez o papel da Edwiges, é que é mulher do Marcos Frota.
- É não, minha amiga: era. Porque bonita daquele jeito já botou ele pra trás e deve andar mesmo de grude com o Erik Marmo?
- Erik Marmo? Mas ele não já estava namorando a Edwiges na novela?
- Quem tava namorando a Edwiges na novela era o Cláudio, o Cláudio, o personagem! Aliás, aquele homem é um pecado. Chega me dá um queimor aqui por dentro quando ele aparece na novela.
- Arre, que eu já não sei mais é de nada. Esse povo de novela não sossega o rabicó, uma hora tá casado, na outra já tá no maior trololó. A filha de uma amiga minha, uma moça muito comunicativa (e que justamente por isso estuda comunicação), me contou que lá na faculdade dela todo mundo anda meio desconfiado com essa confusão de ficção com realidade.
- É, minha amiga, eu não sei aonde vamos parar desse jeito? Pior é a filha de um amigo meu, que começou a fazer Jornalismo e terminou virando atriz de novela, olha só. Já a colega dela, modelo de agência, tipo Gisele Bündchen, sabe?, contou que foi visitar uma emissora de televisão dessas e saiu de lá apresentadora de telejornal, vê se eu posso? Só porque acharam o rostinho dela lindo, muito expressivo pra dizer notícia?
- Pois é, amiga, a conversa tá boa mas deixa eu me apressar que hoje eu vou ao cinema com meu marido Oscar e ainda tenho de passar em casa pra botar o videocassete pra gravar, porque o Oscar não perde o telejornal nem eu quero perder minha novela, né?
- Pois tome cuidado, viu?, porque do jeito que as coisas andam é capaz de ele assistir à novela pensando que está vendo o telejornal e você assistir ao telejornal pensando que é novela? He, he, he? Não liga não, é só brincadeirinha.
- Eu que não vou ligar pra isso. Você está mais do que certa, minha amiga.
- Mas, que filme vocês vão ver?
- Vamos ver Matrix Reloaded.
- Ah, eu já assisti, gostei muito. Tenho certeza de que vocês vão a-do-rar. É um filme que separa muito bem a ficção da realidade. Não é que nem essas novelas e esses telejornais aí, que agora deram pra misturar tudo e deixar a gente nesta confusão?
* Paulo José Cunha é jornalista, pesquisador, professor da UnB, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Este artigo é parte do projeto acadêmico Telejornalismo em Close <www.tjemclose.hpg.com.br>, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <[email protected]>

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