Meu avô e os ratos

Por J.A.Moraes de Oliveira Uma das mais vivas lembranças de meu avô Patrício era a da matança das ratazanas que estavam infestando os galpões …

Por J.A.Moraes de Oliveira

Uma das mais vivas lembranças de meu avô Patrício era a da matança das ratazanas que estavam infestando os galpões das carroças. Quando os tios começaram a plantar nas várzeas da fazenda, as carroças cederam lugar para pilhas de sacos de arroz e milho destinados ao consumo da casa.


Ignorando as preocupações de minha mãe, ele me conduzia cedo pela manhã até a frente da casa grande. Enquanto isso, os peões carregavam as ratoeiras de arame para alinhá-las a uns 200 metros de distância, no meio da grande várzea, ainda molhada pelo orvalho.


E lá permaneciam esperando a ordem do velho fazendeiro, ereto na beira do campo, com suas bombachas negras balançando ao vento. Ele me olhava, desenhava um sorriso cúmplice e fazia um sinal com a mão para os peões. Os homens abriam as ratoeiras e os enormes ratões corriam em direção à casa, único refúgio possível. Mas os peões estavam preparados e os abatiam a golpes de rebenque. Às vezes, um dos ratões corria na direção do campo aberto, enganando os peões. O avô, atento, fazia um sinal imperceptível para o cão cinzento deitado a seus pés: "Profeta, pega".


E o grande cão se precipitava em carreira pelo campo, voltando segundos depois com o ratão entre os dentes, olhos de dever cumprido, esperando o afago da magra mão marcada por veias azuis. Ele nunca me deixava chegar perto dos ratões mortos, que eram empilhados e logo incendiados com querosene. "Por causa dos micróbios da peste", dizia o avô, que além de revolucionário em sua juventude, havia se formado em medicina no Rio de Janeiro. Um dia me mostrou com orgulho cansado seu diploma em letras floreadas, amarrado com uma desbotada fita vermelha. E contava pedaços de estórias de sua viagem de navio, passando pelo porto de Rio Grande, vigiado pelos navios ingleses.


Mas as estórias da revolução, ele nunca as contou. Eu já ouvira os peões comentando no galpão que a tropa comandada pelo meu avô havia degolado "alguns castelhanos" capturados perto do Uruguai. Eram acusados de serem espiões, disfarçados de peões nas fazendas fronteiriças, que informavam os orientais da movimentação dos pelotões revolucionários.


Os "provisórios" os induziam a falar palavras com um "s" no meio, o que logo denunciava sua origem. Claro que eu nunca me atrevera a perguntar ao avô sobre aquelas estórias. Observava seus doces olhos azulados, sua ternura com os cavalos e netos e tinha dificuldades em acreditar nas conversas dos galpões. Teria meu avô ordenado a morte dos espiões castelhanos como comandara a matança de ratos naquela manhã?


Um dia, tomei coragem e perguntei a um dos tios de quem eu mais gostava, se aquelas estórias eram verdadeiras ou não passavam de uma das muitas lendas do campo. O tio Alvinho era uma espécie de ovelha negra na família. Gostava de domar cavalos chucros em vez de se dedicar ao campo e ao pastoreio. Andava sempre com um revólver niquelado no coldre e uma longa adaga de cabo de prata atravessada nas costas do cinto. Mas era o único dos tios que me dava balas de hortelã e me levava, faceiro, para exibir os cavalos que domava.


Ele pensou um bocado em minha pergunta e, enquanto enrolava lentamente um cigarro de palha, contou que o avô guardava muitas lembranças tristes dos tempos de guerras, onde cada estancieiro rondava os campos com a Winchester debaixo dos pelegos da montaria. E só para atiçar minha curiosidade, prometeu: "Um dia eu ainda vou te contar muitas estórias do Coronel Patrício".


Foi quando me alvorocei todo, interrogando-o com os olhos, querendo saber das estórias proibidas. Mas Tio Alvinho sorriu, afagou minha cabeça e disse: "Me lembra de te contar sobre as pratarias da bisavó Brígida, que foram enterradas nas areias da Lagoa dos Patos".


E como quem não quer nada da vida, montou o zaino, galopou para longe, abanando em despedida seu chapéu de barbicacho.

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